8-4-1919
Do seu cabelo branco preso com ganchos de tartaruga, dos olhos castanhos imensos (mas imensas eram as lentas), das orelhas gigantes - faziam-me espécie, não sabia que crescem com a idade. Dela atrás da camilha com a braseira eléctrica, ao lado dum paquidérmico telefone, na sala da televisão; dela na sala de jantar, a lanchar chá de limão e bolachas de água-e-sal, guardadas na lata com desenhos ingleses; dela no quarto a dar-me rebuçados peitoriais Santo Onofre, guardados naquelas mesinhas-de-cabeceira com porta para o penico de porcelana.
E dela na capela da casa, cheia de santinhos, sentada numa cadeira (que levantava o tampo e tinha uma tábua forrada a veludo, para ajoelhar) a ouvir a rádio renascença e a rezar o terço. Todos os dias.
Era muito beata, a avó Ana. Muito crente.
Vim a saber, crente em tudo.
Descobri uns postais dela para a irmã mais nova, que teve uma longa doença e morreu cedo. Num recomendava paciência com a albumina, o remédio. Noutro dizia "Minha querida irmãzinha: Já era muito tua amiga, mas desde que sêi que já foste minha filha, noutra incarnação, muito mais amiga sou, se é possível ser-se mais do que tenho sido. O Fragoso recomenda-te que continues fazendo preces como te ensinou, o que faz m.to bem e são d'um grande alcance, quando feitas com fé. Adeus. Uma beijoca da tua amiga e tua irmã Ana".
Quando contei a descoberta à minha mãe, ela contou-me que a avó também acreditava em fantasmas, mas recusava falar disso. Na sua casa de Beja, o cão passava o tempo a ladrar para uma porta à saloon, e uma vez a Ana ouviu o filho bebé a chorar: quando entrou no quarto, viu um vulto sobre o berço (um homem ruivo e com barba, como o falecido sogro)... e, até morrer, o meu tio-avô Armando teve uma marca de dentes na orelha.
Sem comentários:
Enviar um comentário