Nas minhas memórias mais recônditas, o Cartaxo era uma vila pequena, com ruas espaçosas, porque havia menos gente e menos carros (ou eu era mais pequeno e tudo parecia maior), e as pessoas conheciam-se umas às outras, que mais não fosse de vista.
Não é que a vila fosse muito bonita, mas nos últimos anos tornou-se mais parecida com as outras terras, graças aos construtores/cunicultores - tal a prolificidade das construções, agora com letreiros pouco imaginativos, vende, vende, vende.
A terra cresceu, tornou-se cidade, houve um êxodo das freguesias rurais e não conheço a maioria das pessoas. Mas continua a haver referências: na rua principal (podia chamar-se direita, como em muitos outros lados, porque o é), a maioria das lojas mantém-se e, tirando os cafés que se modernizaram com paredes espelhadas e neons, preserva a traça antiga. E mantém muitos dos lojistas.
A meio da rua, a velha drogaria Guedes (a cantar há 140 anos...) vendia óleos para mobílias, drogas, sabonetes, batons, ferragens, soda cáustica, artigos de carnaval (íamos lá todos!), bijutaria, brinquedos, tintura de iodo e perfumes caros avulso - num tempo em que havia menos dinheiro e ainda se poupava. E em tempos faziam-se análises a vinhos.
Tinha de tudo como um armazém chinês, e quando não tinha, a resposta pronta era "de momento não temos, chega para a semana". Mesmo forçado a renovar o aspecto, mantinha a montra cacofónica, os armários brancos quase até ao tecto, soalho de madeira e as bancadas envidraçadas. O nome é que, parece, teve um upgrade, agora é perfumaria.
O Sr. (Fernando Howell) Guedes, o decano dos lojistas, era uma figura: sempre de bata branca, um sorriso nos olhos, cabelo azeviche com brilhantina e meneando respeitosamente a cabeça a cada cumprimento.
Por poucas semanas, não chegou aos 80. Já uso suficientes clichés para dizer que também morreu um pouco de mim, mas foi mais uma amarra ao Cartaxo que existia e se largou, o passado ficou um bocadinho mais para trás. O pretérito ficou mais perfeito.
Se algum cineasta fizesse um filme passado no último quartel do séc. XX, nesta terra, haveria certamente uma cena na drogaria (perdão, perfumaria), com um fleumático e cortês Sr. Guedes ao balcão: "bom dia, minha Senhora, tenha a bondade de dizer em que posso ajudá-la".
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