...e depois, com bigodes de leite, pedem mais paciência e esforço ao povo, que a "vaca 'tá seca".

segunda-feira, 31 de março de 2014

RELATIVIZA

 
 
Depois de 48 anos atrás das grades, um homem condenado à morte foi libertado há  dias,  no Japão. Em todo o mundo, ele foi o prisioneiro que passou mais tampo (acima de 30 anos) no corredor da morte - sem poder falar com outros presos, ver televisão ou ler livremente.
Iwao Hakamada tem 78 anos e foi provavelmente preso por engano, acusado de matar o patrão, a mulher e os 2 filhos, incendiando depois a casa da família. Preso em 1966, condenado à morte em 1968 e com pena confirmada em 1980, Hakamada sempre insistiu que foi forçado pela polícia a assinar a confissão, ao fim de 20 dias de espancamentos. Novas provas e testes de ADN (de sangue encontrado em amostras da alegada roupa do assassino) indicam que o homem estará inocente - foi libertado e aguarda novo julgamento.
Hakamada sofre de doença mental (a espera pelo enforcamento teve consequências, e começou a mostrar-se confuso e desorientado, enchendo as cartas enviadas à família com rabiscos sem sentido) e mostrou-se apático aquando da saída da prisão - consta que, quando o advogado lhe deu a notícia, 'pareceu entender, mas não expressou nenhuma alegria com a notícia'.
Pormenor sádico, no Japão, a pena de morte é executada sem aviso - o homem viveu décadas a acordar todos os dias, sem saber se esse era o último. E sem culpa nenhuma.
 
Face ao exposto:
Triste porque não conseguiste nota para medicina?
Chateado porque o salário não chega?
Danado com o teu chefe?
Possesso porque erraste um número no euromilhões?
Amor não correspondido?
Colérico com uma vida madrasta?
Relativiza.
 

sexta-feira, 28 de março de 2014

EXPRESSIONS POPULAIRES

Os franciús invadiram Portugal por 3 vezes, e 3 vezes foram escorraçados. Assentaram arraiais por pouco tempo (mesmo esse, foi demasiado), mas deixaram uns souvenirs, que pegaram de estaca na linguagem popular.
Jean Andoche Junot comandou a primeira invasão, uma espécie de blitzkrieg: entrou por Idanha-a-Nova, em 17/11/1807, acelerou pela margem direita do Tejo e chegou a Lisboa no dia 30... a tempo de ver a armada portuguesa, com a corte, a sair da barra do rio - ficou 'a ver navios'.
O governador-geral, entretanto nomeado duque de Abrantes (duc d'Abrantès), procurou esquecer o desaire com uma vida faustosa, entre caçadas, festas e idas ao teatro - viveu 'à grande e à francesa'.
O forró não durou muito: o povo sublevou-se em Junho, os ingleses vieram dar uma mãozinha (paga com língua de palmo) e, no final do verão quente, o exército napoleónico deu de frosques. Não sem que Junot levasse tudo o que conseguiu carregar (nas fragatas emprestadas pelos ingleses, que os derrotaram), incluindo obras de arte - foi 'de armas e bagagens'. A pressa em zarpar, essa, crismou a expressão 'despedida à francesa'.
Na comitiva de Junot, veio Louis Henri Loison, mau como as cobras, famoso pelas pilhagens e pelo seu gosto em torturar, por vezes até à morte, inúmeras pessoas. Má sina tinha quem fosse apanhado pelo general, que perdera o braço esquerdo num acidente de caça - muita gente 'foi para o maneta'.

Partida da corte de D. João VI, 29-11-1807 (Henry L'Évêque, 1815) 



 

quinta-feira, 27 de março de 2014

IDAS A BANHOS

 
A partir dos finais do século XVIII, era comum as pessoas mergulharem na Junqueira e em Santa Apolónia, devido às alegadas propriedades curativas do rio. Na verdade, era mais garantido que apanhassem doenças, ou não fosse o Tejo a casa de banho da cidade: a excitação de poderem chapinhar na água fazia esquecer as calhandreiras, que despejavam os bacios poucos metros ao lado.
A moda [do turismo balnear, iniciado na Inglaterra, por volta de 1750] enraizou-se em Lisboa nos primeiros anos de 1800. Entre Junho e Setembro, era comum ver famílias inteiras em romaria matinal na direção do Tejo, acompanhados pelos criados, que lhes transportavam as pesadas roupagens de ir ao banho e as toalhas. As praias da Junqueira e de Santa Apolónia, nos dois extremos da cidade, eram as estâncias mais populares.
Logo de manhã, o rio fervilhava de barcas de banhos, alugadas pelas famílias mais ricas (esses botes, chamados catraios, eram usados durante o resto do ano para transportar gente entre as duas margens do rio). Chegados à praia, os veraneantes subiam a bordo e o barco navegava apenas uns metros, para que não se perdesse o pé. Os homens despiam, na proa da embarcação, os trajes de cerimónia e vestiam um colete de lã e calções compridos, e atiravam-se à água, onde esperavam pelas mulheres, que mudavam de roupa dentro de uma espécie de tenda feita com lençóis, montada na popa. Idealmente, trocavam os complicados vestidos e desconfortáveis corpetes por decorosas vestes de banho que lhes cobriam o corpo todo - e de lã grossa, para não deixar que a água moldasse a roupa ao corpo. Na margem, praticamente ao lado destas chiques farras de gente com sangue azul, dezenas de miseráveis calhandreiras despejavam no rio os seus potes cheios de... chamemos-lhes impurezas. Os matadouros a montante, perto do Terreiro do Paço, acrescentavam o seu quinhão, atirando carcaças e outros restos de animais para o rio.
Já as senhoras que viviam em moradias à beira-rio, com jardins até à margem, entravam na água com uma corda atada à cintura e  outra ponta presa a um armário dentro de casa, para não se deixarem levar pela correnteza. Mergulhavam rapidamente e regressavam a casa. Já os pobres que gostavam de imitar os ricos mas não tinham dinheiro para alugar um barco banhavam-se nas praias de areia de Pedrouços e da Cruz da Pedra. Nesses locais havia, à beira da água, tendas para as mulheres se mudarem e nadadores-salvadores, armados com cordas, para acudir a quem precisasse de auxílio.
Um escritor inglês louvava os mergulhos das mulheres lisboetas, se não fosse assim, nove em cada dez mulheres de Portugal nunca experimentariam outra ablução depois do baptismo - nem uma simples passagem com uma toalha molhada pela cara, de manhã.
Histórias do Tejo, Luís Ribeiro (ad.)

terça-feira, 25 de março de 2014

EU TIVE UM SONHO


Eu tive um sonho. Sonhei que a democracia era mesmo representativa, e que, em vez de advogados, macro-economistas, consultores e avençados em partidos, a assembleia da república tinha professores, funcionários públicos, pequenos empresários, reformados, trabalhadores fabris e desempregados - todos com prazo fixo de retorno às suas vidas.
Acordei assustado: os deputados eram bem menos alheios às consequências das suas medidas, mas havia de ser bonita a cacofonia, ninguém se entendia ou chegava a qualquer consenso criador, dadas as suas divergências insanáveis...
Depois veio o alívio: essa ideia (um corporativismo sem bolor) é tão surreal como cavalos alados, grilos falantes e pedras rolantes. E tão gira.

quinta-feira, 13 de março de 2014

PARA MALES DE AMOR, PRIMA 2

Boulevard Diderot, 1969, Henri Cartier-Bresson
 
- A alma padece de mui variadas formas. Temos os pruridos da dúvida, doença crónica dos filósofos que procuram a certeza; hipertrofias de crenças, mal frequente aos vinte anos; aneurismas de aspirações, muito vulgares em bacharéis formados; icterícias de desespero, nos chefes de família numerosa; fracturas de carácter, nos homens políticos; luxações do senso comum, nos poetas; paralisias de ociosidade, nos empregados públicos; dispepsias de indignação, nos contribuintes; noli me tangere de susceptibilidades, nos deputados flutuantes; convulsões de entusiasmo, em afilhados de ministros; marasmos de desalento, em pretendentes sem protecção; cancros de exigências, em diplomatas indispensáveis; epilepsias de ciúmes, nos maridos; e as cataratas de amor, em...
- É a doença de Carlos, é a doença de Carlos.
Carlos moveu-se com impaciência.
- Pois é terrível doença - continuou o orador. - Vejamos. Causas: - É hoje inquestionável que esta espécie de cegueira procede de ordinário da exposição do doente ao fogo e esplendor de uns olhos e ao hálito embalsamado de uns lábios de mulher. Para evitar o contágio, construíram-se em tempos vários estabelecimentos higiénicos  que chamaram conventos. (...)
- Os sintomas são variados. Em geral o doente tem fisionomia de parvo característica; no intervalo dos acessos cai em uma espécie de beatífica idiotia, da qual nem os cáusticos o arrancam. Nos paroxismos chega a arrepelar os cabelos, a amarrotar o colarinho, a soltar gritos, que bolem com a vaidade dos tigres, e a arrulhar de maneira que causa o desespero dos pombos. Nos casos mais fortes, a doença toma um carácter de malignidade e o doente faz-se poeta. Nesse estado, o médico perde as esperanças e reclama os sacramentos... do matrimónio.
- E o tratamento? E o tratamento? - perguntaram alguns, rindo.
- A higiene é tudo, meus amigos; mal vai se a profilaxia não atalhou a moléstia.(...) Recomendo a gastronomia, porque as funções do estômago e do coração são antagonistas.
Júlio Dinis, Uma Família Inglesa   

sexta-feira, 7 de março de 2014

PORTUGAL É NOSSO!?

Carte des Royaumes de Congo, Angola et Benguela Avec les Pays Voisins. 1754, Jacques Bellin
'A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez
de produzir riqueza, produz ricos.' Mia Couto

Não me passava pela cabeça vir a comprar um livro escrito a seis mãos, sendo duas delas as de Francisco Louçã. Explicação, tirando uns parágrafos com uma prosa mais ideológica, podia ser escrito por Paulo Morais, José Gomes Ferreira ou qualquer jornalista paciente... que não trabalhe no Sol, no I, na Sábado, no Correio da Manhã, no Jornal de Negócios, no JN, no DN, no Record, n' O Jogo ou na TSF - publicações com accionistas angolanos (sobra a Impresa, onde já têm um pézinho de 3,21%, e o Público de Belmiro, agora agarrado a Isabel dos Santos na Zon-Optimus e no Continente Angola).
Não que 'Os donos angolanos de Portugal' traga alguma cacha, 'apenas' desfaz longas meadas dum intrincado novelo, identificando os donos do dinheiro angolano e os seus interlocutores lusitanos.
Não é que sejam muitos, dum lado ou de outro: do lado de lá, a família e a corte restrita de José Eduardo dos Santos, com generais, brigadeiros, membros das suas casas civil e militar, vice-presidentes e ministros em funções; do lado de cá, a banca, umas dezenas endogâmicas de políticos contratados para a constelação empresarial luso-angolana (assim como o procurador do DCIAP responsável por inquéritos relacionados com Angola...) e grandes empresários* que precisam de financiamento ou querem instalar-se em Angola e têm que oferecer metade do negócio a 'parceiros' locais - não é preciso escolher muito, é um número reduzido.
Já a entrada em bancos, petrolíferas, jornais, a editora Babel, conserveiras (Bom Petisco e Pitéu), quintas vinícolas, clubes de futebol (o Sporting e os 2 Vitórias), empresas de telecomunicações, o terminal portuário de Setúbal, construtoras, cerâmicas (pobre Viúva Lamego) e no estúdio da Tobis, deve-se ao enriquecimento alquímico**: que fazer aos muitos milhões gerados por Santos & associados (nas palavras do PR, uma 'acumulação primitiva de capital' que deve ser adequada à realidade africana), precavendo a hipótese do poder político fugir de controlo, quanto Santos arrumar as botas? Não basta empilhá-los num cofre, as contas bancárias podem sempre ser congeladas. Procure-se um país carente de capital, arranjam-se umas pechinchas (que ainda conferem alguma respeitabilidade), a fortuna é reciclada/legitimada e o pé-de-meia está protegido.
Não sei qual o termo adequado, cleptocracia, oligarquia ou partidocracia. Certo é que a leitura é um pouco nauseante, e faz lembrar aquela história do 'parece m..., cheira a m..., sabe a m..., ainda bem que não pisei'.
Lê-se numa penada.

* O mais calejado é Américo Amorim, que tem uma receita infalível, é sócio da filha do PR angolano no BIC, e partilha o Banco Único com o filho do PR moçambicano.
** Exemplo de contas esquisitas: diz o FMI que, entre janeiro e outubro de 2011, apenas 1/4 dos lucros da Sonangol (a nave-mãe) entrou no tesouro angolano, o destino do resto teve uma explicação tão sumária quanto insuficiente. 
  









quinta-feira, 6 de março de 2014

ALEXANDRE O'NEILL III. SENTENÇAS DELIRANTES...

Gerard Castello Lopes, Lisboa 1957

Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes

1
Não te ataques com os atacadores dos outros.
Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.
O mesmo deves fazer com os açaimos.
E com os botões.         
 
2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia
.
 
3
Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.
Depois, faz um berreiro.
Quando tiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.
 
4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor...
Esta deve ser a tua filosofia.
 
5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.
Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.
 
6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.
É provável que te sintas logo muito melhor.
Sai, então, de baixo da pedra.
 
7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.
Mas dá sempre um «Bom dia!» ao pessoal do estaleiro.
Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.
 
8
Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!
 
9
Tens um glorioso passado futurível,
mas não fiques de colher suspensa,
que a sopa arrefece
.
 
10
Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem
de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes.
A criação literária não frequenta o guarda-roupa,
muito menos quando a roupa tem gente dentro.
 
11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.
 
Alexandre O'Neill, A Saca de Orelhas

ALEXANDRE O'NEILL II. UM ADEUS PORTUGUÊS

Joshua Benoliel, 1912

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O'Neill

ALEXANDRE O'NEILL I. PORTUGAL

primeiro dia de escola, 1936, desc.

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós…

Alexandre O'Neill (1924-86)
Feira Cabisbaixa, 1965

terça-feira, 4 de março de 2014