Francisco de Goya, Maja nua
Se não fosse o senhor Biscaia ainda hoje estava no mesmo sítio ao
balcão da perfumaria. Foi ele quem me pagou o arranjo dos dentes, me mandou
endireitar o nariz e me pôs a dirigir a boutique para ter uma vida decente:
como podia ser ingrata, com podiam os meus pais ser ingratos? Ainda por cima o
apartamento em meu nome, mobilado, e por não ser ingrata é que tenho o retrato
dele na sala, na estante da enciclopédia, junto ao bar com as garrafas de
licorzinho de laranja que o estômago do senhor Biscaia é sensível e de vez em
quando vem cá para uma conversa, uns conselhos, opiniões de amigo de quem tem
mais experiência da vida que eu, sempre fui uma ingénua de olhos tapados e
qualquer pessoa me engana. O senhor Biscaia passa na boutique de tempos a
tempos, verifica as contas, auxilia-me, quando é preciso discute com os fornecedores
e equilibra o orçamento. Discute é uma forma de dizer porque o senhor Biscaia
não discute, propõe e se o senhor Biscaia propõe as pessoas aceitam. Tem uma
forma de resolver os assuntos sem levantar a voz que cala toda a gente. E ao
ir-se embora fica um silêncio de respeito que dura a tarde toda. A esposa,
coitada, sofre de um problema na coluna, nunca o acompanha. Informaram-me que é
uma senhora filha de gente rica, e ao princípio foi ela que ajudou o senhor
Biscaia a colocar os negócios nos eixos. Por consideração pela doente o senhor
Biscaia não tira a aliança nem passou, nos cinco anos que isto dura, uma noite
comigo. Vai a seguir ao jantar, e sou eu quem lhe faz o nó da gravata por ter
mão para essas coisas e o nó da gravata ser um enigma para ele depois do quinto
cálice de licor de laranja. O senhor Biscaia levanta-se do sofá, informa
- Lá vou eu para o patíbulo
ajudo-o a chegar ao elevador e fico à janela a ver o carro galgar
passeios até à esquina. Suponho que depois da esquina se aguenta mais ou menos:
que me lembre nunca vi o senhor Biscaia com um cotovelo em gesso. A caminho do
patíbulo entala-me meia dúzia de notas no cinzeiro para uma aflição que o dia de
amanhã não se sabe o que traz, os meus pais dedicam-se a envelhecer e as
farmácias e as consultas andam pela hora da morte. Com a reforma que lhe entregam
sou eu que dirijo o barco e o senhor Biscaia, sensível e atento aos problemas
dos outros, remedeia a questão.
Apesar do reconhecimento que lhe devo não sou capaz de o tratar por
Artur: habituei-me ao senhor Biscaia e não merece a pena insistir comigo que do
Biscaia não saio. Sustenta que lhe cria dificuldades eu dizer
- Senhor Biscaia
nos momentos em que estamos, para assim me exprimir, mais próximos, uma
vez ele na poltrona e eu no braço da poltrona, outras na cama de estilo, cheia
de enfeites que dão um trabalhão a limpar, coisas torcidas, roscas, conchas de
cedro, cornucópias, um frasco inteiro de óleo para deixar aquilo em condições,
o senhor Biscaia
- Não me trates por senhor Biscaia que não reajo
bem tento suspirar
- Artur
mas não me sai, ou seja o suspiro ainda consigo e no entanto o
- Artur
encrava-se, para mim o senhor Biscaia não tem cara de Artur, tem cara
de senhor Biscaia, a autoridade, as feições, os cabelinhos puxados um a um de
uma orelha a outra e que com o esforço se soltam, a placa dos dentes que ele
ajeita com a língua a pedir
- Espera
ou com o polegar se a língua não chega e os molares de cima do senhor
Biscaia misturados com os de baixo, ao cabo de meia hora de lingerie e trabalho
o senhor Biscaia uma reacçãozinha que sempre é melhor que nada, eu quase a
bater palmas
- Tão homem
e a reacçãozinha some-se, há-de haver comprimidos para desmaios destes
e no entanto claro que não vou ofender o senhor Biscaia mencionando pastilhas,
mudo de penteado, uso brincos compridos, encharco-me em água de colónia espanhola
e o senhor Biscaia enervado com ele mesmo
- Que maçada
na esperança que o licor ajude e não ajuda, dizem que o marisco é
garantido em casos de impossibilidades e eu pratinhos de camarões, percebes, o
senhor Biscaia a irritar-se
- Tira-me isso daqui
e quando saio para mudar de soutien encontro-o de barriga para o ar na
cama de estilo a fixar o tecto com ódio apesar dos óculos na mesa de cabeceira.
Quando o senhor Biscaia tira os óculos fica mais nu que despido, parece outra
pessoa, lá o distingo pela cicatriz da bochecha, o senhor Biscaia
- É escusado insistires
de maneira que fico ali a fazer-lhe companhia e a sentir as fervuras da
decepção e da vergonha. Num esforço que só Deus sabe o que me custa alcanço um
- Artur
penoso numa última esperança e o senhor Biscaia, sempre tão educado,
solta um
- Artur o caralho
que se deve ouvir na Junta de Freguesia a três quarteirões de distância.
Não lhe levo a mal: se não fosse o senhor Biscaia ainda hoje estava no mesmo
sítio ao balcão da perfumaria e essas atenções contam. Os meus pais
ensinaram-me a ser reconhecida e sou, dou valor a quem se interessa por mim. A
minha mãe não pára de avisar-me
- Não percas o Biscaia
(na altura dos conselhos esquece-lhe o senhor)
acrescenta depois de reflectir
- se perdes o Biscaia estamos feitos
e tem razão porque não há muitas pessoas com a bondade dele. Tem o seu
feitio, quem não tem o seu feitio, volta e meia uns gritos, uns ciúmes, tudo
quanto é homem olhado de banda, um empregado dele sempre a ver com quem
converso e a declarar-me pelo canto da boca
- Quero-te fiel ao Biscaia
eu que sempre fui fiel ao senhor Biscaia. Deus me livre de meter aqui
em casa um palerma qualquer cheio de reacção e de bolsos vazios, não ofendo
quem me ajuda, sei pôr as pessoas no lugar e sei qual é o meu lugar, comigo o
senhor Biscaia pode dormir em paz. No outro dia garantiu-me que se a esposa
falecer casamos. Ao contar à minha mãe quase desmaiou de alegria. Para o ano o
senhor Biscaia prometeu que lhes oferecia um andarzinho em condições, aqui
perto dado que a minha mãe me ajuda na cozinha e no engomar da roupa e o senhor
Biscaia gosta das casas asseadas. O meu problema é se ele adoece ou assim, um
azar no fígado, um ataque. O melhor, cá na minha, é não pensar nisso e enfiar
na ideia que o senhor Biscaia é eterno. Por esse lado estou descansada: a minha
mãe tem relações com uma velhota com poderes e a velhota até a informou que uma
tarde destas, quando menos se espere, o senhor Biscaia reage.
António Lobo Antunes, quarto livro de crónicas
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