Este mundo é pequeno. Na sala da minha mãe existe uma pequena reprodução dum quadro pintado por um meio-primo direito da avó dela, pessoa cuja casa no Chiado visitou - ficando fascinada com o sotão cheio de pincéis e telas gigantes. Do senhor, só recorda que tinha uma mulher loira, que fora a Londres retratar a irmã de Isabel II e que ia, volta-não-volta, jantar a casa do ditador de Santa Comba.
Bem, certo dia a empregada viu o retratado na tal reprodução e exclamou 'olha, este é o Dr. Mota Cabral, era médico em Valada'.
A única coisa que sabia dele era o nome - António Soares é a sua graça -, até que resolvi bisbilhotar. Ora aqui vai.
António Soares (Lisboa 1894-Lisboa 1978) foi ilustrador - debutou em público na II exposição de humoristas, em 1913 -, designer gráfico (entre outros, dos armazéns Grandella), pintor, arquitecto, decorador e cenógrafo. Em tudo, auto-didacta.
Segundo alguns, 'amigo dilecto' de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá Carneiro, foi um dos Modernistas: as suas obras têm uma mão bem medida de Columbano, uma pitada de arte deco (inspiração que colheu numa viagem a Paris), um cheirinho de Van Gogh, de Cézanne e dos expressionistas alemães. Dizem.
Soares foi responsável pelos painéis do Bristol Club e d' A Brasileira (foi o primeiro a ser convidado para decorar o renovado café, em 1923, sendo seguido por Eduardo Viana, Stuart Carvalhais, Almada Negreiros, ...), e tem quadros nas colecções do Museu do Chiado, Museu José Malhoa, Museu Soares dos Reis, Fundação de Serralves, Fundação Gulbenkian, Fundação IBM em Nova Iorque, Banco de Portugal, Assembleia da República, Palácio de Queluz e Paço de Vila Viçosa.
Considerado à época um dos 'poucos grandes pintores da actualidade', António Soares expôs na Europa, E.U.A. e Brasil, e venceu prémios da SNBA, do SNI (foi o único a bisar o prémio Columbano) e da Exposição Internacional de Paris de 1937. Natacha, destacadamente, e os retratos da irmã e de Maria de Mello Breyner, são talvez a sua contribuição maior para o modernismo português.
A partir de 1950, o pintor foi saindo da boca de cena, aproximando-se do naturalismo que, enquanto modernista, renegara.
E hoje só é conhecido por marchands et connaisseurs. Bem cotado, porém.
Ilustração Portuguesa (1921)
Capa do livro Leviana de António Ferro (1921)
Sem título (1922, CAM - Fundação Calouste Gulbenkian)
Quarta-feira de Cinzas, Bristol Club (1925)
Camões
Quarta-feira de Cinzas, Bristol Club (1925)
Camões
Natacha (1928, CAM - FCG)
Retrato de Maria de Mello Breyner (1932, CAM - FCG)
Figuras femininas (1930)
No Terrasse do café des Plaires (c.1920-1930, Museu do Chiado)
Ponte D. Luis, panorama da Ribeira-Porto (1935, CAM - FCG)
Ponte D. Luis, panorama da Ribeira-Porto (1935, CAM - FCG)
Retrato da irmã do artista (1936, col. MNAC - Museu do Chiado)
Pierrot (1944, Museu do Caramulo)
Menino nu (1955-56)
Rossio cosmopolita (1969)
- autoria negada pela sobrinha -
Pierrot (1944, Museu do Caramulo)
Menino nu (1955-56)
Rossio cosmopolita (1969)
- autoria negada pela sobrinha -
mais informação em http://www.mestreantoniosoares.org/
Para verem como foi (i)mortalizado, o Público noticiou a exposição 'O modernismo feliz - art deco em Portugal' no Museu do Chiado, com 112 obras 'de autores tão conhecidos como Abel Manta, Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Mário Eloy ou Eduardo Viana' (http://lazer.publico.pt/exposicoes/306782_o-modernismo-feliz-art-deco-em-portugal).
ResponderEliminarO nome de Soares não aparece, mas a tela que ilustra a notícia é o seu 'No terrasse do cafe des Plaires'.
I rest my case.
Caro Luís Duarte, sou sobrinha do Mestre António Soares e quero agradecer-lhe as suas palavras e o seu post, que encontrei por acaso. Grande parte do que referiu é informação correcta e pertinente, mas também é verdade que este grande pintor modernista é hoje em dia um quase desconhecido. Se calhar por culpa dele - António Lopes Ribeiro costumava vangloriar-se de ter sido a única pessoa com quem António Soares nunca se zangou!...
EliminarVou contactá-lo oportunamente - estou a preparar uma biografia completa sobre o meu tio. Bem haja!
Como não consigo encontrar outro meio de o contactar, não tem o seu email visível e não consigo subscrever o seu blog, vou acrescentar aqui algumas rectificações que são pertinentes para elucidar a informação que forneceu acima (vou ter de fazer isto em vários posts porque se não o programa não aceita):
Eliminar- foi desenhador, figurinista e cenógrafo - o Museu do Teatro tem imenso material, que foi aumentado com a entrega em depósito de muitos estudos que estavam ainda no seu espólio (gerido pelo meu Pai, Américo Soares, único irmão vivo, e que foi criado pelo meu tio que não teve filhos), pintor, designer gráfico e tudo o mais, mas nunca foi arquitecto;
- foi um dos grandes modernistas e grande amigo de Fernando Pessoa (com quem trocava impressões sobre astrologia), de Christiano Cruz, de Stuart de Carvalhais, de Almada Negreiros, de Eduardo Viana, de José Pacheko, de António Ferro, de Jorge Barradas, de Emmérico Nunes, de Sarah Afonso, até de Helena Vieira da Silva (muito mais jovem do que os outros mas muito decidida), mas também era um dos mais velhos, e devo salientar aqui que ao contrário de muitos dos seus colegas, desde os 16 anos que se teve de sustentar a si próprio (e mais tarde sustentou toda a família) e nunca teve Pai rico que lhe pagasse viagens a Paris, por exemplo;
(...)
(...)
ResponderEliminar- relativamente aos quadros da Brasileira (ainda há dias me passou pela mão umas cartas do José Pacheko para ele) ele não foi simplesmente convidado, foi o responsável por organizar e distribuir os quadros pelos colegas, e pelo cumprimento das datas de entregas dos trabalhos (?!), por exemplo; oportunamente, no blog que tenho vindo a fazer www.mestreantoniosoares.blogspot.pt, vou colocar reproduções dos dois quadros feitos por ele, com retratos de alguns dos personagens que passavam pela Brasileira - um com figuras masculinas e outro com figuras femininas - esses quadros julgamos que estão, hoje em dia, nalguma colecção particular talvez no Brasil...;
- a menos que haja mais alguma informação que não possuo, julgo que não existe nenhuma obra de António Soares na Fundação de Serralves, mas sim em todos os outros locais/museus e estabelecimentos públicos que menciona, entre outros, posso acrescentar, o Museu da Cidade de Lisboa (o Camões acima reproduzido), algumas escolas como a Escola Secundária Eng. Ferreira Dias no Cacém, a Escola Secundária Dr. Solano de Abreu em Abrantes, o Altar-Mor da Capela do Seminário Maior dos Olivais (junto ao Parque das Nações), a Escola Básica B12 Raúl Lino na Tapada da Ajuda - e muitíssimas mais obras em colecções particulares, recordo que ele trabalhava para viver;
- o meu tio só esteve em Paris em 1928 (como refiro acima, quando teve dinheiro para o fazer), mas já era moderno e modernista muito tempo antes; em 1937, na Exposição Internacional das Artes e das Ciências de Paris, dois anos antes da Segunda Grande Guerra, com grande espanto e surpresa de toda a organização do Stand de Portugal, ganha o Primeiro Prémio de Pintura, e curiosamente Pablo Picasso ganha o Primeiro Prémio de Desenho (foi onde expôs a "Guernica" pela primeira vez no Stand de Espanha); por curiosidade, só toma conhecimento do Prémio algumas semanas depois...;
(...)
(...) e com este termino:
ResponderEliminar- devo realçar que o meu Tio nunca se tornou "naturalista", só aperfeiçoou a técnica;
- também me cumpre referir que, por ser muito bem cotado na época, levou a que houvesse muitos pequenos artistas que para venderem e ganharem dinheiro, imitavam o meu Tio, e o exemplo disso é a última reprodução que apresenta, "Rossio Cosmopolita" que não é em definitivo do meu tio, como muitos outros que tenho vindo a descobrir em sites de leiloeiros e até em amigos nossos (que estão a comprar "gato por lebre")...
Perguntar-me-à como é que posso afirmar isto? Em primeiro lugar porque o meu Pai e eu própria, conhecemos tantas mais obras do meu tio, que sabemos determinar com muito maior rigor do que qualquer outra pessoa, hoje em dia, se alguma obra é, ou não, do Mestre António Soares.
Quanto ao seu último comentário de Outubro, se foi à Exposição do Museu do Chiado, pôde sem dúvida constatar que não só o pintor mais representado depois do Almada Negreiros é sem dúvida o António Soares, mais ainda, que a maior peça exposta, é um dos quadros que está na Assembleia da República, assinado também pelo meu tio. Pena que tenham tido o lapso (?) de omitir o nome dele, como muito bem refere.
Por último gostaria de lhe fazer um pedido, caro Luís Duarte, o de me contactar, pois pela história que refere no início, ainda vamos descobrir que somos parentes... quem sabe?...
Não posso ainda terminar sem colocar tudo na perspectiva correcta: do que se lembrará a sua Mãe ou a sua Avó não sei mas posso garantir-lhe: a minha tia Maria Germana, sua mulher, passou a ser loira platinada já com mais idade, na juventude era morena; que o meu tio nunca foi a Londres, retratou a Princesa Margarida a partir de foto; não morava no Chiado mas na Rua de Santo António dos Capuchos, mesmo ao lado do Hospital, numa casa pombalina (alugada) porque tinha tectos altos para poder pintar obras grandes; e nunca almoçou nem jantou com o Dr. Salazar, era muito amigo do António Ferro, mas isso não significava que tivesse ou adoptasse as mesmas ideias dele, foi amigo e doente do Dr. Motta Cabral, por isso lhe fez um retrato.
ResponderEliminarEstá tudo documentado.
Um abraço
Ana Ornellas, devo agradecer os seus generosos contributos, que muito enriquecem este post. Replico apenas com 2 notas: li algures acerca de trabalhos como arquitecto, não licenciado (auto-didacta, foi a expressão que usei) - o que estará porventura errado.
ResponderEliminarQuanto ao seu último comentário, é cabal prova de como a memória, idos 50 anos, é batoteira. Confirmei há pouco, a visita da minha mãe ocorreu em 1962 (seria já a senhora Soares loura?), a lembrança mais viva era uma mesa de jantar gigante (pelo menos, para uma menina de 14 anos) e o Chiado não servia de morada, mas de destino recorrente, onde o Mestre reunia com os amigos na Brasileira.
Finalmente, quanto ao parentesco, o meu trisavô Benjamim da Costa e Maria, mãe do Mestre, eram 2 dos 8 filhos de Floriano da Costa Barroso, de diferentes casamentos. Benjamim, o mais velho, era padrinho de Patrício, o mais novo. Chamar-se-á o seu pai Américo Soares?
Um abraço
Este comentário foi removido pelo autor.
EliminarCara Ana Ornellas, tenho pena de não sermos primos de facto, mas temos algo em comum, um notável parente: meio-primo direito da minha bisavó, por parte da mãe, e seu meio-tio, por parte do pai. Fica a promessa da fotografia.
ResponderEliminarAbraço
Caro Luís Duarte,
EliminarTemos efectivamente algo em comum e, pela parte que me toca, o meu tio António Soares (era o mais velho) que teve um irmão, Domingos, e uma irmã - cujo retrato é o quadro lindíssimo pertença do Museu do Chiado, que aparece acima - Judite, e que ambos morreram vítimas da tuberculose, e porque não teve filhos, criou o meio irmão mais novo, o meu pai, que foi para casa dele com 5 anos, e foi um verdadeiro pai para ele. O meu pai sempre o tratou por "mano" e era a família mais chegada que tinha - todo o resto da família se afastou, talvez porque viviam em mundos um pouco diferentes - há mais de setenta anos atrás...
O meu pai é professor reformado, formado em Históricas e Filosóficas e sempre disse que ficou a dever ao irmão a oportunidade de estudar e de tirar um curso superior. Se tivesse sido criado pelos tios paternos talvez viesse a trabalhar numa oficina de bicicletas ou de automóveis.
Para mim o meu tio António é a única família mais chegada do meu Pai, e sinto que tenho a obrigação de não deixar que se esqueçam do que ele representou para o Movimento Modernista Português, e para a cultura portuguesa do século XX.
Quando ele morreu, em Junho de 1978, antes da Missa de corpo presente, na Igreja de S. Mamede, o Mestre Abel Manta disse ao meu Pai, e eu tinha dezasseis anos, estava ao seu lado e recordo-me perfeitamente das suas palavras: "Os meus sentimentos, morreu um dos maiores pintores do século XX".
Vá indo ao blog que lhe falei e ficará a conhecer um pouco mais deste seu parente afastado... e ainda algumas curiosidades
Um abraço... e boa Páscoa!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarRemovi os textos acima que eram demasiadamente particularizados. Fica a informação mais relevante
EliminarAbraço,
Boa tarde,
Eliminaracabei de "herdar" um quadro do seu tio, um retrato da minha avó Georgina Cordeiro, atriz de sucesso do teatro dos anos 20/30.
Seria ela amiga do seu tio ?
Cumprimentos
Sim, com certeza que sim. Gostaria de poder ter uma imagem desse quadro, seria possível contactar-me? Agradeço desde já e fica aqui o meu email: anaornellas.intervir@gmail.com
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