segunda-feira, 29 de julho de 2013

RUUUUUAA

(...) a forma como percorri aquele malfadado caminho ao longo de filas de cubículos, atraindo os olhares de toda a gente, um morto-vivo a andar, ainda na esperança de me irem dizer uma coisa diferente (...) Mas não, o meu chefe disse simplesmente: Infelizmente, creio que sabe a razão porque o chamei aqui, esfregando os olhos debaixo dos óculos para mostrar como estava cansado e desanimado.
Gillian Flynn, Em parte Incerta

Pois era.
Os servidores públicos tiveram uma redução de 5% nos salários e, a seguir, a perda de 1 e depois 2 salários, porque tinham o privilégio de não poderem ser despedidos.
Afinal, não era verdade, e nem foi preciso mudar a constituição, bastou uma maioria parlamentar. Com topete, o secretário de Estado afirmou que o objectivo do diploma, hoje aprovado numa maratona de votações (para os senhores deputados irem de férias), não é o despedimento de ninguém.
Afinal, o governo sempre consegue mobilizar os portugueses. Bem, parte dos portugueses, e a mobilidade é especial.
Para os felizes mobilizados, escolhidos pelo superior critério do chefe, é um despedimento bonificado com um ano de limbo (período de requalificação, é o cínico termo) - uma espécie de carta da Caixa da Comunidade, com direito a passar na casa da partida e receber 2 contos.
E para o Estado, é bom? Como disse ao Expresso um especialista americano em administração pública, David Osborne, 'uma coisa é emagrecer, outra é cortar mãos e pés'.
 
p.s.: no capítulo 'políticas para retomar o sucesso' dum dos seus livros, o então académico Álvaro Santos Pereira escreveu 'não podemos fazer dos funcionários públicos os bodes expiatórios desta crise. Não são. A culpa do descalabro das finanças públicas não é dos funcionários públicos, é dos governos'. Que dirá agora, enquanto ex-ministro da economia?
 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

BLASFÉMIAS: LEÓN FERRARI

Por vezes, dá-se o caso de prestarmos mais atenção aos criadores depois deles morrerem. León Ferrari (1920-2013) morreu hoje*, razão suficiente para um raide pela sua extensa obra, espalhada por 7 décadas - foram várias as fases, as técnicas (desenho, colagens, escultura, desenho), os materiais (gesso, arame, papel, madeira, cerâmica ou... fezes de aves) e as temáticas.
Entre estas, há 3 elementos nucleares, que se cruzam, aqui e ali: o sexo, a igreja e a ditadura argentina, que o levou a um auto-exílio no Brasil. 
Ferrari testou (ou ultrapassou, dirão uns) todos os limites da religião católica, alvo duma atenção (ou embirração) especial - tornando Joana Vasconcelos, com o seu Shopping Fátima, uma menina de coro. 
A sua exposição retrospectiva de 2004 foi considerada blasfema pela igreja, justificando uma tumultuosa troca de galhardetes com o então arcebispo de Buenos Aires, agora um tolerante Papa Francisco. Afinal, qual o pecado maior, pôr uma imagem de Jesus num picador de carne, ou a passividade  - colaboracionismo, para os mais críticos - da igreja com o regime militar?
E agora, alguns exemplos, não recomendados a mentes sensíveis.

* A esta hora, Ferrari já sabe se Deus existe. Em caso positivo, está metido em sarilhos.

 Mujer, cerca de1960
 
Carta a un general, 1963, tinta china sobre papel, 60x45 cm

El árbol embarazador, 1964, 42x32 cm

Série Núnca Más

Série Núnca Más



Série Heliografias



Série Ideas para infierno
 
 

Série Surrealismo Nuevo Mundo, cerca de 1991









La civilización occidental y cristiana, 1965, yeso, madera y óleo, 200x120x60 cm

Untitled, 1994

Série l'Osservatore

Série Relecturas de la biblia, cerca de 1983

Devocion


Série Brailles - Unión libre (poema de André Breton em braille sobre fotografia), 2004

segunda-feira, 22 de julho de 2013

CORRIDA LOUCA


O que é que resultou deste intervalo (tão demorado como a publicidade da TVI em prime-time)?
A solução a), um governo remodelado que oferece 'garantias adicionais de entendimento sólido' e de 'coesão e solidez da coligação partidária até ao final da legislatura'.
Trocando por miúdos, uma promoção de Portas a co-piloto, ou um bocadinho mais: já 'tou farto das tuas queixas, agora pega tu no volante, a ver se te calas e consegues fazer melhor.
Prognósticos? Durante a intervenção de salvação nacional (a que só faltou um S. Bernardo com um barril de cognac na coleira), ficou a saber-se que as propostas do CDS estavam mais próximas das do PS que das do parceiro da sua coligação... coesa e sólida.

domingo, 21 de julho de 2013

PENITÊNCIA


Uma pedra nos rins; uma pneumonia; uma mistura de calmantes e antidepressivos (a ponto de o 'distraído' não conseguir destrancar a porta da wc); um ataque de asma; uma febre alta dum executivo vindo de áfrica (ocupado, à vez, com 2 telemóveis XXL).
Cinco pacientes (vem de paciência, presumo) a partilharem uma tarde de sábado, numa sala de observações dum hospital privado.
Mundo pequeno, 2 deles vivem no mesmo prédio há 10 anos e nunca tinham trocado mais que bons dias. Tiveram oportunidade de recuperarem, eu e o sr. do 3º andar (é, vim embora sem nos apresentarmos).
Fiquei a saber que ambos temos uma amiga em comum, que trabalhava comigo e agora trabalha com ele, numa prisão. A conversa começou comme il faut, sobre as maleitas.
Aqui tratam-me melhor do que me trataram no S. João, e é mais barato, contou. Bem, é mais barato para nós, mas para o Estado não, retorqui. Olhe, eu também ando a pagar um submarino que não comprei, matou a conversa.
Disse que engordara 40 kg desde que deixara de fazer desporto, e que tivera de desmarcar uma caminhada na serra (um desporto violento, quanto a mim) por causa das dores. Aí passámos para o 'microcosmos' penitenciário, como lhe chamou: perguntei se não podia usar o ginásio da cadeia, em horas 'mortas', mas o sr. do 3º andar disse que não: o ginásio, apetrechado como os melhores, é só para os reclusos, como os 3 médicos em permanência, o dentista, os psiquiatras e os psicólogos - que eles têm muitos problemas a resolver (ironia).
Fiquei também a saber que 'as crianças das escolas podem jogar à bola no cimento, mas o campo dos reclusos tem que ser em resina sintética, o piso custou €50.000, ouviu bem', que 'eles tratam-se bem: jogam playstation, fazem desporto, vêm televisão, têm aulas de ioga e de teatro, ao fim de 2 anos de cama-comida-e-roupa-lavada estão recuperados para a sociedade, vão embora nos seus bmw e vão gastar o dinheiro que juntaram'.
Sobre a reinserção na sociedade, que é o suposto motivo primeiro da clausura, o sr. do 3º andar também opinou: não só os bons filhos (amiúde) à casa tornam, como, em 20 anos, conheceu várias gerações das mesmas famílias, com avós, filhos e netos a partilharem o ofício, o cadastro e a cantina. E o bairro social: o sr. do 3º andar estranha que as gerações se sucedam sem que o filhos consigam melhorar de vida e abandonar os bairros.
O curioso é que os 130 kg de guarda prisional disseram tudo com a voz baixa e pausada (também, as dores vetavam-lhe qualquer exuberância), com algo irónica bonomia e sem qualquer animosidade.
Não diria que é uma perspectiva redutora, porque vista por dentro e mastigada durante muitos anos. É mais uma visão desencantada ou céptica do seu universo. Não que o sr. do 3º andar não tenha apreço pelos seus presos: 'espero que continue a haver muitos, preciso de pagar a casa'.

p.s.: seguem-se, creio, mais 10 anos de bons dias e um upgrade intimista, então essa saúde? 

sexta-feira, 19 de julho de 2013

COMPROMISSO DE SALVAÇÃO NACIONAL

 
Cavaco disse que há, por aí, inimigos do compromisso de salvação nacional.
Provavelmente, são romanos...
 
 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O BOM SELVAGEM?

Karen Wynn, psicóloga de Yale, fez algumas experiências com crianças e bebés de 3 a 6 meses, concluindo que as crianças nascem com noções de bem e de mal, e com preconceitos - tudo por selecção natural e instinto de sobrevivência:
1. Um tigre de peluche tenta abrir uma caixa com brinquedos e um cão de camisola amarela dá uma ajuda; a cena repete-se e um cão de camisola azul impede o intento. Apresentados os 2 cães a bebés, mais de 3/4 deles escolhem o cão 'simpático'.
2. Um de 2 coelhos não devolve a bola que o tigre deixou cair; a seguir, o coelho 'mau' tenta abrir a caixa dos brinquedos, um dos cães ajuda e o outro fecha-a. 81% dos bebés escolheu o peluche que 'castigou' o coelho mal-comportado.
3. Terceira situação, dá-se a escolher 2 taças com cereais diferentes. A grande maioria dos bebés escolhe o peluche que 'gosta' da taça com os seus cereais preferidos (o seu 'semelhante') - e, a seguir, escolhe o cão que impede o peluche que preferiu os outros cereais (o 'outro'), de abrir a caixa dos brinquedos.
4. As crianças escolhem alternativas de 'recompensas' emparelhadas para si e para um miúdo que, alegadamente, chegará mais tarde. Pois as crianças mais novas preferem receber menos fichas, se ainda assim ficarem com mais que o outro (por exemplo, 2-1 em vez de 4-4). Aos 8 anos, a maioria escolhe as opções mais igualitárias, a partir dos 9, opta pelas alternativas mais generosas com o outro.
Conclusão: Rosseau estava enganado, porque o homem não é uma criatura boa por natureza, corrompida pela sociedade; Maquiavel e Hobbes estavam enganados porque diziam que o homem é mau por natureza; Kant estava enganado, ao achar que o homem nasce sem moral.
  


quarta-feira, 17 de julho de 2013

ESTÁTUAS QUE FALAM

Fica em Stone Town, a parte velha de Zanzibar, na Tanzânia. Mais precisamente, onde em tempos (1811-73) houve um mercado de escravos, e logo depois foi erigida uma catedral anglicana (1873-77), como uma espécie de redenção - consta que o altar foi colocado onde havia o tronco onde o chicote provava a qualidade da 'fazenda'. O memorial em cimento, de 1998, é da artista sueca Clara Sornas.
É impossível ficar indiferente à cova com 5 pensativas estátuas - 4 resignadas e 1 orgulhosa -, mimetizando centenas de semblantes que ali passaram, assistindo às suas licitações. 
A mim provocou 2 sentimentos imediatos, um mais compreensível que o outro: empatia pelos negros escravizados e vergonha pelos brancos que os mercavam (na verdade, travava-se dum negócio multiétnico: a ilha de Zanzibar era parte do sultanato de Oman, líderes tribais do continente arranjavam a 'mercadoria', vendida por árabes a europeus, rumo a ilhas do Índico, arábia ou américa).
Dois pormenores, as águas das chuvas aumentam o impacto da obra (os 'modelos' também eram armazenados em celas que enchiam de água com as marés) e a corrente que agrilhoa as estátuas veio de Bagamoyo, o mais conhecido porto de escravos do continente.   
Mas, palavras para quê?
 
 





quinta-feira, 11 de julho de 2013

DISCURSO DE OGRE


Os discursos de Cavaco são como os ogres e as cebolas: têm camadas.
O governo está 'em plenitude de funções', mas a solução proposta de reorgânica não é aceite, e o seu prazo é amputado. Eleições não, mas os partidos que assinaram o memorando devem juntar-se num compromisso de salvação nacional: isso é um governo, ou 'apenas' um pacto em que os 3 partidos, nesta e na próxima legislatura, se comprometem a médio prazo com um checklist programática, dando um aval a quem estiver em S. Bento? Cavaco quer, ou não, promover um governo de iniciativa presidencial, com um árbrito (uma espécie de Monti) à sua escolha? Se eles não se entenderem, ameaça com 'outras soluções politico-partidárias', como um governo seu (o que, dizem, a constituição já não é possível desde 1982), mas não o sufrágio que agora recusa?
Já se sabia que, qualquer que fosse a sua decisão, não podia agradar a todos, mas Cavaco fez a quadratura do círculo: não aceitou a remodelação do governo (pode?), para angústia deste; não convocou eleições, chateando a esquerda; demitiu o governo a prazo, humilhando a direita; algemou o PS a um entendimento, que é como lepra para os socialistas; deixou de fora o PC e o BE, desconsiderando a extrema-esquerda.
É óbvio que é hora dos pilíticos terem juízo, e que Portugal carece dum entendimento entre os 3 partidos que governam, à vez, para deixarmos a ventilação assistida.
Mas a meridiana decisão de Cavaco cria  estabilidade política, ou 330 dias de pântano? Um governo precário ajuda a clarificar a situação ou baixar a temperatura política? Nos próximos 11 meses (um instantinho), com eleições à vista, a oposição vai limpar as armas, o PS vai fugir dum acordo como o diabo da cruz, e um governo moribundo e enxovalhado não vai ter força para conseguir inverter o ciclo, reduzir despesa e 'passar' as avaliações trimestrais.

p.s. 1: Quando se esperava um puxão de orelhas, Cavaco ignorou olimpicamente Passos e Portas, como se faz às criancinhas, que sabem como é mais perigoso o silêncio esfíngico do pai, que um feroz sermão. No caso de Portas, o bailarino que tropeça nos próprios pés (metáfora de Sócrates), é uma vingança gelada de 20 anos.
p.s. 2: Não se faz! Álvaro Santos Pereira já tinha pago os bilhetes para Toronto.
p.s. 3: declaração de interesses - votei numa ala deste governo, e não queria mudar de governo, mas que o governo mudasse (o que podia acontecer com a sua versão 2.0).  

sábado, 6 de julho de 2013

AUTO-ESTIMA

 
EU E EU DAMO-NOS MUITO BEM.
Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça 
Expresso 6.7.2013

PALAVRA DE HONRA

 
Malmequer, bem me quer, não fico, fico,
não fico nem que a vaca tussa, afinal fico,
nem por sombras fico, fico se pedires desculpa,
não fico nada, tava a brincar.

VARIAÇÕES




ponte 25/4 e cristo-rei, vistos do terreiro do palácio da Ajuda

quinta-feira, 4 de julho de 2013

FEIRA POPULAR



Tá difícil mandar um jornal para a rua, as notícias ficam velhas num instante: sai ministro Gaspar, entra ministra Albuquerque, sai ministro Portas (sem avisar o seu partido), governo prestes a cair, Passos diz que não sai e não aceita demissão de Portas, ministros Cristas e Mota Soares colocam o lugar à disposição do partido, secretário de Estado Ávila diz que não sai, coligação vacila, coligação em restauro, Portas vai à sede do conselho de ministros, mas fica numa sala ao lado. Ufa.
 
Durante 2 anos, o partido minoritário esteve contrariado, governando contra o que pensa - ele e quem o elegeu - i.e., pôs a cabeça no cepo por um política com a qual não concordava. Esticando a corda da Lealdade, tornou pública a sua discordância, fosse no parlamento ou em conferências de imprensa - ajudando a 'borregar' a TSU e o seu sucedâneo para os reformados -, quando o seu peso na coligação foi desprezado por Passos. Como troco, umas humilhaçõezitas vindas do outro lado.
Como Portas escreveu na sua carta de demissão, a forma reiterada como as coisas são decididas no governo, à sua revelia, tornam dispensável o seu contributo - trocado por miúdos, a sua opinião não é tida em conta, em particular quanto à alforria da economia perante as finanças, e a substituição de Gaspar era o momento certo para mudar de agulha.
Ou vai, ou racha, decidiu Portas. A sua saída é irrevogável (passa a correr por fora, um fôlego para a sua sobrevivência) e a coligação só continua com um reset total, desde que o CDS sirva para mais que aritmética parlamentar.
Bem, na virtuosa (?) hipótese do governo não cair, e Portas ainda vá a tempo de voltar a ligar à tomada o ventilador deste governo em estado vegetativo, eu cá punha um detector de metais na porta da sala de reuniões ministeriais, que não parece que confiem mais uns nos outros. 
 
Só há um pormenor, além desta escalada, ou cheque-mate, ou garotice, ou..., existem pessoas, um país, uma assistência externa, uma dívida e respectivos juros (galopantes, como Portas previa há meses, caso houvesse instabilidade política).
Senhores, parem o carrossel, que a gente quer sair.   

quarta-feira, 3 de julho de 2013

LX FACTORY

Tal como na ponta do arco-íris se encontra um pote de ouro, junto a um dos pilares da ponte 25/4 existe uma preciosidade. Onde foi instalada a Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense (1846), uma âncora da Alcântara industrial oitocentista, e mais tarde a Companhia Industrial de Portugal e Colónias, a tipografia Anuário Comercial de Portugal e a gráfica Mirandela, havia há poucos anos um mega-espaço devoluto, onde o vento bufava por entre janelas partidas.
Os vidros quebrados ainda lá estão, as paredes rabiscadas também, mas agora há gente, com lojas, ateliers, publicitários, editoras, restaurantes, livraria (a bela Ler devagar, 'recheada' com uma gigante máquina de impressão), quiosque e bancas nas ruas - são mais de 100 empresas. Assim se recicla uma cidade.