segunda-feira, 30 de agosto de 2010

DO GIM À REPÚBLICA. UMA LONGA METRAGEM

Einstein disse que as coincidências são a forma usada por Deus para passar anónimo. Pois aconteceram-me duas coincidências, ou pelo menos improbabilidades.
Anteontem, conversava em Milfontes com a avó duma criancinha. A propósito de bebidas (havia sangria na piscina, uma bênção), disse-lhe que odiava uma bebida, o gim, pelo sabor intragável e por uma rotina diária há uns 20 anos antes – pai entra em casa, senta-se na sala e chama o infante para preparar um gim com água tónica.
Quem diria?, no dia seguinte, estava a beber gim ao jantar-barra-serão, na casa duma amiga - bem disfarçado, como refresco.
Calhou contar essa amiga que tivera uns trabalhos muito interessantes, a montar exposições da Torres do Tombo, com a hipótese de mexer em livros e mapas do tempo do Camões, sem os cuidados CSI que mostram na TV. Uma delas fora na Cordoaria Nacional.
E pronto, no dia seguinte fui deixar os miúdos em Lisboa. Aonde? Às portas da Cordoaria Nacional. E havia lá uma exposição sobre o centenário da República, que eu tinha vontade de ver. E vi, mas sempre a abrir: faltavam 25 minutos para a exposição fechar e a minha amável companhia não parou de tagarelar.
Tive pena, é uma exposição para ver os pormenores, e tem as paredes pejadas deles, duma ponta à outra do edifício. Vão, é de graça, até 6 de Outubro.
A propósito, o comissário das comemorações do centenário da república é o ex-banqueiro Artur Santos Silva, com pergaminhos na família. O seu avô, Eduardo Santos Silva, maçon e membro do partido democrático, foi ministro da Instrução nos últimos 2 governos da 1ª república.
Li há uns meses uma história deliciosa, que julgo se passou com esse Eduardo (ou com o seu filho, pai de Artur?). Cenário, tribunal plenário no tempo da ditadura. O réu, por delito “político”, riu-se enquanto o juiz lia a sentença, ridícula. O meritíssimo instou-o a calar-se. Vai daí, Santos Silva levantou-se e pediu a palavra. Autorizado, apenas disse “Ah, ah, ah”.

A vantagem do ser o ano do centenário é que há imensa informação, dá para ficar com uma ideia sobre o que se passou mesmo.
E foi mais ou menos assim:

1. MORTE À MONARQUIA


Ora vejamos: um Rei que não governa (limitado nos seus poderes desde 1834, a monarquia constitucional era na prática uma república com rei), um regime moribundo e o partido no poder ganha todas as eleições, até ser trocado pelo monarca, numa base rotativa. Preparados para a confusão de nomes de ruas?
Os republicanos não só não foram inibidos, como foram favorecidos no jogo partidário. O Centro Republicano (criado em 1876, animado pela implantação da república espanhola em 73) foi protegido pelo governo regenerador do Fontes Pereira de Melo, para desgastar os progressistas, ajudando mesmo o republicano José Elias Garcia a chegar à presidência da câmara de Lisboa (a Bernardino Machado, FPM diria “A República virá, mas tarde; não precisamos dela, porque fazemos tudo o que ela faria”). Depois foram os progressistas de Braamcamp, em 81 e em 90, de volta à oposição, a votar nos candidatos republicanos, para fazer mossa nos regeneradores.
Entre 1893 e 1906, o regenerador Hintze Ribeiro e o progressista José Luciano de Castro governavam à vez, chegando a distribuir previamente os deputados, trocando votos nas eleições e partilhando a gamela – perceberam, como disse Luciano, “a conveniência de ser feita a eleição pacata e sossegadamente por combinação entre todos”. A la-ta!
A correr por fora (mesmo titubeante e não concorrendo a eleições entre 1900 e 1904), o populismo nacionalista e anticlerical dos republicanos capitalizou os votos de protesto, com uma organização eficaz e agitprop, enquanto os dois principais partidos se pulverizaram em facções.
Depois havia os dissidentes, ora veladamente apoiados pelo partido grande do outro campo (Luciano emprestou deputados ao ex-regenerador João Franco), ora patrocinadores dos republicanos, como o ex-progressista José de Alpoim – inimigo do meu inimigo, meu amigo é. “A República não pode vir dum assalto dos republicanos, poderia vir do esfacelamento dos partidos constitucionais”, bem escreveu Oliveira Martins em 1889.
Agora junte-se um país atrasado e analfabeto, com as finanças públicas sempre no vermelho, o vexame do tal mapa cor-de-rosa com a Inglaterra, um rei mal amado (“tudo o que se faz de mal, é o rei quem o faz”, diziam os descontentes) que precisava de “adiantamentos” para pagar as contas - o subsídio real, muito baixo, não era aumentado desde 1821.
Em 1907, João Franco não é demitido por D. Carlos, para surpresa dos progressistas que lhe tinham tirado o apoio parlamentar, e ainda suspende o parlamento (o que não era inédito), governando por decreto – i.e., ditadura. Os políticos do Centrão viram-se ao fim de décadas apeados do poder e semearam protestos e vaias ao rei, e alguns declararam-se republicanos. João Franco insistiu em liquidar mais empréstimos à casa real, os malditos “adiantamentos”. D. Carlos avisou o ditador, “estamos diante de uma fogueira que desejamos apagar, e não se apaga fogo lançando-lhe lenha”. Meu dito, meu feito, a 1 de Fevereiro de 1908, era morto na Praça do Comércio.
Voltaram os governos dos 2 velhos partidos, agora fragmentados em 7 grupos, e o despeito de quem ficava de fora – só eram monárquicos os políticos a quem o rei confiava o poder, disse um diplomata em 1909 (D. Carlos, parece, dizia haver uma monarquia sem monárquicos). E deixaram um galvanizado partido republicano crescer em votos, ganhando a câmara de Lisboa com 8000 votos, em 450000 habitantes.
Na noite de 3 de Outubro de 1910, umas centenas de militares saíram à rua, ninguém defendeu a monarquia. Um par do reino aceitou a república justificando que “a monarquia que existia não merece o sacrifício” de ninguém.

2. A REPÚBLICA TAMBÉM TEVE UM GOLPE DO CALDAS

A “cedência” do espaço entre Angola e Moçambique à Inglaterra (como se houvesse outro remédio!) inflamou os republicanos. A 1 de Janeiro de 1891, juntam-se em congresso no Porto, elegendo uma direcção que não advogava uma revolta, contra a vontade dos mais radicais.
No dia 31 de Janeiro, saem à rua 3 regimentos e uma companhia da Guarda Fiscal, que caminham para a Câmara Municipal, onde um Alves da Veiga declara a República, acompanhado por figuras como o Actor Verdeal, o abade de S. Nicolau e o chapeleiro Santos Silva.
Verdeal lê a lista do governo provisório, que incluía 2 professores, um lente, um general, um desembargador, o banqueiro Pinto Leite e o médico José Ventura dos Santos Reis – que vim a descobrir, é aquele senhor da fotografia no meu corredor, tio-tetravô dos miúdos.
Parecia fácil?. Nããão. Vai daí, depois de fanfarras, foguetes e vivas, resolvem subir a R. de Santo António (agora tem a data da ocorrência) até à Praça da batalha. Acontece que lá em cima estava a guarda municipal: carga de fuzilaria mata uns quantos, debandada. 300 briosos acantonaram-se na câmara, mas renderam-se às 10 da manhã. 12 revoltosos mortos, alguns cabecilhas emigraram, prisão e julgamento de civis e 505 militares em barcos colocados em Leixões, degredo para 250 pessoas em África (alguns amnistiados em 1893).
E o tal governo provisório? Negou ter dado autorização para aparecer o seu nome… Um deles deu um no cravo e outro na ferradura: “mas não autorizei ninguém a incluir o meu nome na lista do governo provisório, lida nos Paços do Concelho, no dia 31 de Janeiro, e deploro que um errado modo de encarar os negócios da nossa infeliz pátria levasse tantas pessoas a tal movimento revolucionário.”


3. FAZ 100 ANOS


1910 foi agitado e com intentonas abortadas. A 14 de Junho é fundada a Comissão da Resistência. A 29 de Setembro junta-se o pessoal: a maçonaria, a carbonária (uma organização secreta para-maçónica), a loja Acácia e o Directório do PRP. Machado Santos fazia uma dobradinha, era o chefe máximo da carbonária e o maçónico irmão Champoniet.
Um dos presentes contou que, no final, todos se voltaram para o Cândido dos Reis (também conhecido como irmão Pêro de Alenquer), perguntando-lhe se seria o momento para tentarem a vitória, tendo o almirante respondido: "É o momento! A monarquia achincalha-nos e nós temos que nos decidir. Não posso garantir a vitória, mas afianço-lhes que a Revolução, vencedora ou vencida, não será uma vergonha.
Senha da revolução, escolhida por Cândido dos Reis, foi “mandou-me chamar? – passe, cidadão”.

A revolução republicana começou na noite de 3 de Outubro, a arrancou mal. A maioria dos carbonários não apareceu, a tropa sublevada não passou de 400 soldados. Foram tomados 2 dos 10 regimentos de Lisboa, o quartel da marinha em Alcântara e dois cruzadores no Tejo; insucesso na tomada do paço e do quartel do carmo (mais uma vez, a reacção acantonada no Carmo) da guarda municipal. A coisa ‘tava preta e o líder da insurreição, Cândido dos Reis, suicidou-se na madrugada de 4 de Outubro, depois de passar pelos Banhos de S. Paulo (aliás, a outra cara da conspiração, o médico Miguel Bombarda, foi assassinado na véspera, por um doente mental).
Os revolucionários acamparam na rotunda. De manhã, face aos boatos sobre o acantonamento das forças monárquicas no Rossio e que a Guarda Municipal se preparava para carregar, o comandante Sá Cardoso reuniu os oficiais e expôs a situação. Resultado, muitos militares despiram a farda, vestiram roupa à paisana e esfumaram-se. Um não o fez, Machado dos Santos, ficou a comandar 9 sargentos, 200 militares, uns cadetes, alguns civis, a maioria desarmada, e um só membro do Directório republicano, Malva do Vale.
Mas a tropa monárquica e o governo não confiavam um no outro e ninguém veio defender a monarquia – um ministro deposto desabafou a Raul Brandão que “se os da Rotunda se sentam em cadeiras e esperam 3 dias, ao fim de 23 dias a República estava proclamada”.
O ajuntamento da rotunda cresceu e, às 11h, os 2 cruzadores bombardearam o palácio das necessidades – D. Manuel escondeu-se na tapada do palácio, no atelier onde D. Carlos “pintava e recebia visitas patuscas”, antes de se escapulir para Mafra, mandando chamar a Rainha-mãe Amélia e Rainha-avó Maria Pia.
Entretanto, o comandante da Escola naval recusa a ordem real de torpedear os barcos revoltosos, e a rotunda resiste ao ataque das forças reais lideradas por Paiva Couceiro. Os ventos mudam e, pelas 20 horas, a rotunda enche de povo, voltando alguns dos que haviam despido as fardas: 500 militares e 1000 civis, grosso modo.
A noite traz fogo cruzado de artilharia e a tomada do couraçado D. Carlos. Comandantes de tropas reais afirmam que não abrirão fogo sobre os marinheiros que desembarquem no Terreiro do Paço. O Directório do Partido Republicano acompanha os acontecimentos toda a noite de 4 para 5 de Outubro, primeiros nos Banhos de S. Paulo (ficaram literalmente nas termas…) e depois no Hotel Europa, por cima dos Grandes Armazéns do Chiado.
Na manhã de 5 de Outubro, debandaram os militares da situação e os ministros, o rei apanhou o barco na Ericeira. Por volta das 8 da manhã, um diplomata alemão conseguiu que as forças monárquicas suspendessem o fogo durante uma hora, para eventuais alemães abandonaram a cidade. Quando tentou, sob escolta monárquica (que, mal chegou ao cimo da Avenida da Liberdade, foi obrigada a mudar de lado), dirigir-se à rotunda para tentar o mesmo com os republicanos, dá-se um equívoco: a bandeira branca que levavam foi interpretada como rendição, o povo inundou o Rossio e fez a festa com a tropa monárquica, desfazendo as formações militares. O encontro entre Machado Santos e o general Gorjão já não foi sobre um armistício de 1 hora, mas sobre a proclamação da República e a rendição monárquica.
Às 11 horas, José Relvas (acompanhado por Eusébio Leão e Inocêncio Camacho), proclama a República na varanda dos Paços do Concelho: “Unidos todos numa mesma aspiração ideal, o Povo, o Exército e a Armada acabou de, em Portugal, proclamar a República”. O Edital da proclamação da república, assinado por Teófilo Braga, dizia "O Governo Provisório da República Portuguesa saúda as forças de terra e mar, que com o povo instituiu a Republica para felicidade da Pátria. Confio no patriotismo de todos. E porque a Republica para todos é feita, espero que os oficiais do Exército e da armada que não tomaram parte no movimento se apresentem no Quartel-general, a garantir por sua honra a mais absoluta lealdade ao novo regime."
Saíram então “debaixo das pedras” muitos carbonários prontos para defender a república, pousaram para as fotografias e extravasaram alguma violência, tendo matado 2 frades. De resto, a revolução teve 5 feridos à bomba e uma baixa civil. Raul Brandão relatou a revolução no seu diário: “o meu bairro tranquilo: um vizinho sacha as couves com indiferença. (…) Os estragos são insignificantes (…) Só isto!?
E, adivinhem, nas semanas seguintes multiplicaram-se os republicanos “de sempre”. Adesivagem foi o termo criado. É singular a explicação dum militante brigantino, em 1912, “a massa da população não é republicana, como não e monárquica. É o que quiser o Sr. Fulano e o Sr. Sicrano. E este Fulano e este Sicrano, por sua vez, serão o que for necessário às suas conveniências ou ligações pessoais”.

Obituário: Machado Santos, dos primeiros a desencantar-se com o rumo da República (ao ponto de participar num golpe por ano, entre 13 e 17), e Carlos da Maia (e o líder do governo, diga-se) foram mortos na chamada noite sangrenta de 19/10/1921, onde uma camioneta “fantasma” correu Lisboa a recolher vítimas. Tempos muito estáveis.


4. VIVA A REPÚBLICA



A primeira república não cumpriu as aspirações dos republicanos. Não houve tolerância, pelo menos religiosa (“uma república com padres é o maior dos absurdos”, dizia uma activista em 1883), antes uma aversão primária contra a religião. O injustamente incensado Afonso Costa dixit: “em 2 gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu”.
Instituiu-se a separação entre o Estado e a Igreja, mas o que procurou foi a inversão do ascendente: o Estado passou a poder intervir nas pastorais, circulares e na organização da igreja, instalando comissões cultuais. Tolerante (!), proibiu procissões, toques de sinos, fardamentos dos padres, feriados católicos (o Natal ganhou o nome de festa da família) e o ensino religioso. Todos os bispos foram saneados e foram presos 170 padres que divulgaram uma pastoral proibida pelo governo. Em vez dum Estado neutral, apareceu um Estado sectário, constatou um republicano. Imprimia o jornal O Dia, os republicanos preocupavam-se com o L maiúsculo da liberdade, mas não queriam saber do l minúsculo.

Também não houve estabilidade política - os 46 governos dos 16 anos de república transformam os 19 governos nos últimos 30 anos de monarquia numa viagem bucólica –, mas um parlamento que, em vez de legislar, esteve quase sempre dividido emfacções e grupos. E lá voltaram as manifestações de rua, as maiorias fabricadas, com a eleição de deputados “suplementares” (1913), a “produção” de votações a troco de cargos e os fechos do parlamento (1915), as vitórias eleitorais de quem já governava. E golpes frequentes, com talvez 1500 mortos entre 1915 e 1920, muito mais letais que a revolução de 5 de Outubro.
E a democracia? António Sérgio dixit: "é facto único na história, uma república que restringe o voto em relação à monarquia que deitou abaixo em nome de princípios democráticos". Isto a propósito dos recenseados terem descido para menos de metade, com a retirada de direito de voto aos analfabetos, para evitar o tal caciquismo – o chefe do governo Afonso Costa explicou no parlamento, “indivíduos que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma, nem de nenhuma pessoa, não devem ir à urna, para não se dizer que foi com carneiros que confirmámos a república”. Salazar não diria melhor. A propósito, no mesmo discurso, Costa combateu os teóricos do sufrágio universal, negando o voto às mulheres, porque o seu lugar era no lar, como companheira do homem e educadora dos filhos. Toma!
Manteve-se o apego à ordem pública, só que agora na mão de outros. Aliás, uma das primeiras preocupações foi a mudança do poder, com a entrega de toda a república aos republicanos, de alto a baixo, e somente a eles – José Relvas admitiu, nas memórias, ter ajudado a instaurar “uma república privativa de parte da nação”. Começando pela substituição das vereações municipais (as eleições tardaram 3 anos, porque sentiam o eleitorado “adverso”, como se constatou num inquérito aos presidentes das comissões administrativas), a destruição de jornais monárquicos (a lei permitiu, desde 1912, a apreensão de jornais contra a ordem, os bons costumes e a república; em 1916, viria a censura prévia), a ocupação do Estado através da atribuição livre dos empregos públicos aos militantes, a vigilância das ruas por militantes armados do PRP (“a formiga branca”) e a intimidação da magistratura (transferindo magistrados que não acusaram João Franco, como "pedido"), até à eleição de candidatos republicanos sem votos, onde não houvesse concorrente, e a prisão política (2382 presos políticos em 1912), com limitação de direitos – mais uma vez o Costa, verberando que os prazos judiciais eram demasiado apertados para a lei ser eficaz, porque “é preciso que eles sintam que nós iremos até onde for preciso".
Ah, regulamentou-se a greve, mas exigiu-se o pré-aviso, proibiram-se os piquetes e prenderam-se dirigentes grevistas – jornais exclamavam “basta de greves”, militantes republicanos armados perseguiam grevistas e Afonso Costa ganhou o cognome de racha-sindicalistas.
Por fim, o progresso: a maior divergência de rendimentos entre Portugal e o resto da Europa, a falta de dinheiro, o êxodo de 1/25 dos portugueses entre 1910 e 1912, o abrandamento do crescimento do nº de escolas primárias e da taxa de alfabetização entre as 2 primeiras décadas de 1900. Quanto a finanças, liberais como sempre: "o erro da monarquia foram gastar de mais; o Estado iria gastar apenas o que fosse preciso, como se “fazia numa casa comercial honesta”; "o que precisar de aumento de despesa, não, não e não"; era preciso deixar de olhar para o Estado como se tivesse uma mina e inesgotável; a administração pelo estado era “em regra, má e dispendiosa”, cabendo aos particulares criar riqueza e ao Estado gerar um quadro estável e de confiança. Mas atingiu-se o superavit em 1913 e 14, sendo aprovada uma lei-travão, que proibia propostas que diminuíssem a receita ou aumentasse a despesa. Quanto a subsídios para instituição de assistência e educação, Afonso Costa respondia “façam quermesses”.
Os republicanos puseram o municipalismo na gaveta e não houve descentralização de facto no país nem nas colónias – onde se manteve legal o trabalho forçado. A propósito, o nosso Costa contestou os pruridos gerados pela ordem de matar todos os gentios com mais de 10 anos em Angola, na 1ª guerra, com “não nos deixemos mover por idealismos".
O desânimo voltou, como a crítica inflamada. Em 1917, Álvaro de Campos constatava “a falência geral de tudo por causa de todos”.
Foi uma questão de tempo para aparecer alguém e por isto com “ordem” e "estabilidade". Infelizmente.

A REPÚBLICA TAMBÉM TEVE UM GOLPE DO CALDAS


A “cedência” do espaço entre Angola e Moçambique à Inglaterra (como se houvesse outro remédio!) inflamou os republicanos. A 1 de Janeiro de 1891, juntam-se em congresso no Porto, elegendo uma direcção que não advogava uma revolta, contra a vontade dos mais radicais.
No dia 31 de Janeiro, saem à rua 3 regimentos e uma companhia da Guarda Fiscal, que caminham para a Câmara Municipal, onde um Alves da Veiga declara a República, acompanhado por figuras como o Actor Verdeal, o abade de S. Nicolau e o chapeleiro Santos Silva.
Verdeal lê a lista do governo provisório, que incluía 2 professores, um lente, um general, um desembargador, o banqueiro Pinto Leite e o médico José Ventura dos Santos Reis – que vim a descobrir, é aquele senhor da fotografia no meu corredor, tio-tetravô dos miúdos.
Parecia fácil?. Nããão. Vai daí, depois de fanfarras, foguetes e vivas, resolvem subir a R. de Santo António (agora tem a data da ocorrência) até à Praça da batalha. Acontece que lá em cima estava a guarda municipal: carga de fuzilaria mata uns quantos, debandada. 300 briosos acantonaram-se na câmara, mas renderam-se às 10 da manhã. 12 revoltosos mortos, alguns cabecilhas emigraram, prisão e julgamento de civis e 505 militares em barcos colocados em Leixões, degredo para 250 pessoas em África (alguns amnistiados em 1893).
E o governo provisório? Negou ter dado autorização para aparecer o seu nome… Um deles dá um no cravo e outro na ferradura: “mas não autorizei ninguém a incluir o meu nome na lista do governo provisório, lida nos Paços do Concelho, no dia 31 de Janeiro, e deploro que um errado modo de encarar os negócios da nossa infeliz pátria levasse tantas pessoas a tal movimento revolucionário.”

MORTE À MONARQUIA



Ora vejamos: um Rei que não governa (limitado nos seus poderes desde 1834, a monarquia constitucional era na prática uma república com rei), um regime moribundo e o partido no poder ganha todas as eleições, até ser trocado pelo monarca, numa base rotativa. Preparados para a confusão de nomes de ruas?
Os republicanos não só não foram inibidos, como foram favorecidos no jogo partidário. O Centro Republicano (criado em 1876, animado pela implantação da república espanhola em 73) foi protegido pelo governo regenerador do Fontes Pereira de Melo, para desgastar os progressistas, ajudando o republicano José Elias Garcia a chegar à presidência da câmara de Lisboa (a Bernardino Machado, FPM diria “A República virá, mas tarde; não precisamos dela, porque fazemos tudo o que ela faria”). Depois foram os progressistas de Braamcamp, em 81 e em 90, de volta à oposição, a votar nos candidatos republicanos, para fazer mossa nos regeneradores.
Entre 1893 e 1906, o regenerador Hintze Ribeiro e o progressista José Luciano de Castro governavam à vez, chegando a distribuir previamente os deputados, trocando votos nas eleições e partilhando a gamela – perceberam, como disse Luciano, “a conveniência de ser feita a eleição pacata e sossegadamente por combinação entre todos”. A la-ta.
A correr por fora (mesmo titubeante e não concorrendo a eleições entre 1900 e 1904), o populismo nacionalista e anticlerical dos republicanos capitalizou os votos de protesto, com uma organização eficaz e agitprop, enquanto os dois principais partidos se pulverizaram em facções.
Depois havia os dissidentes, ora veladamente apoiados pelo partido grande do outro campo (Luciano emprestou deputados ao ex-regenerador João Franco), ora patrocinadores dos republicanos, como o ex-progressista José de Alpoim – inimigo do meu inimigo, meu amigo é. “A República não pode vir dum assalto dos republicanos, poderia vir do esfacelamento dos partidos constitucionais”, bem escreveu Oliveira Martins em 1889.
Agora junte-se um país atrasado e analfabeto, com as finanças públicas sempre no vermelho, o vexame do tal mapa cor-de-rosa com a Inglaterra, um rei mal amado (“tudo o que se faz de mal, é o rei quem o faz”, diziam os descontentes) que precisava de “adiantamentos” para pagar as contas - o subsídio real, muito baixo, não era aumentado desde 1821.
Em 1907, João Franco não é demitido por D. Carlos, para surpresa dos progressistas que lhe tiraram o apoio parlamentar, e ainda suspende o parlamento (o que não era inédito), governando por decreto – i.e., ditadura. Os políticos do Centrão viram-se ao fim de décadas apeados do poder e semearam protestos e vaias ao rei, e alguns declararam-se republicanos. João Franco insistiu em liquidar mais empréstimos à casa real, os malditos “adiantamentos”. D. Carlos avisou o ditador, “estamos diante de uma fogueira que desejamos apagar, e não se apaga fogo lançando-lhe lenha”. Meu dito, meu feito, a 1 de Fevereiro de 1908, era morto na Praça do Comércio.

Voltaram os governos dos 2 velhos partidos, agora fragmentados em 7 grupos, e o despeito de quem ficava de fora – só eram monárquicos os políticos a quem o rei confiava o poder, disse um diplomata em 1909 (D. Carlos, parece, dizia haver uma monarquia sem monárquicos). E deixaram um galvanizado partido republicano crescer em votos, ganhando a câmara de Lisboa com 8000 votos, em 450000 habitantes.
Na noite de 3 de Outubro de 1910, umas centenas de militares saíram à rua, ninguém defendeu a monarquia. Um par do reino aceitou a república justificando que “a monarquia que existia não merece o sacrifício” de ninguém.

3. VAI FAZER 100 ANOS



1910 foi agitado e com intentonas abortadas. A 14 de Junho é fundada a Comissão da Resistência. A 29 de Setembro junta-se o pessoal: a maçonaria, a carbonária (uma organização secreta para-maçónica), a loja Acácia e o Directório do PRP. Machado Santos fazia uma dobradinha, era o chefe máximo da carbonária.
Um dos presentes contou que, no final, todos se voltaram para o Cândido dos Reis (também conhecido como irmão Pêro de Alenquer), perguntando-lhe se seria o momento para tentarem a vitória, tendo o almirante respondido: "É o momento! A monarquia achincalha-nos e nós temos que nos decidir. Não posso garantir a vitória, mas afianço-lhes que a Revolução, vencedora ou vencida, não será uma vergonha.”
Senha da revolução, escolhida por Cândido dos Reis, foi “mandou-me chamar? – passe, cidadão”.

A revolução republicana começou na noite de 3 de Outubro, a arrancou mal. A maioria dos carbonários não apareceu, a tropa sublevada não passou de 400 soldados. Foram tomados 2 dos 10 regimentos de Lisboa, o quartel da marinha em Alcântara e dois cruzadores; insucesso na tomada do paço e do quartel do carmo (mais uma vez, o Carmo)da guarda municipal. A coisa ‘tava preta e o líder da insurreição, Cândido dos Reis, suicidou-se na madrugada de 4 de Outubro, depois de passar pelos Banhos de S. Paulo (aliás, a outra cara da conspiração, o médico Miguel Bombarda, foi assassinado na véspera, por um doente mental).
Os revolucionários acamparam na rotunda. De manhã, face aos boatos sobre o acantonamento das forças monárquicas no Rossio e que a Guarda Municipal se preparava para carregar, o comandante Sá Cardoso reuniu os oficiais e expôs a situação. Resultado, muitos militares despiram a farda, vestiram roupa à paisana e esfumaram-se. Um não o fez, Machado dos Santos, ficou a comandar 9 sargentos, 200 militares, uns cadetes, alguns civis, a maioria desarmada, e um só membro do Directório republicano, Malva do Vale.
Mas a tropa monárquica e o governo não confiavam um no outro e ninguém veio para defender a monarquia – um ministro deposto desabafou a Raul Brandão que “se os da Rotunda se sentam em cadeiras e esperam 3 dias, ao fim de 23 dias a República estava proclamada”.
O ajuntamento da rotunda cresceu, às 11 os 2 cruzadores bombardearam o palácio das necessidades – D. Manuel escondeu-se na tapada do palácio, no atelier onde D. Carlos “pintava e recebia visitas patuscas”, antes de se escapulir para Mafra, mandando chamar a Rainha-mãe Amélia e Rainha-Avó Maria Pia.
Entretanto, o comandante da Escola naval recusa a ordem real de torpedear os barcos revoltosos, e a rotunda resiste ao ataque das forças reais lideradas por Paiva Couceiro. Os ventos mudam e, pelas 20 horas, a rotunda enche de povo, voltando alguns dos que haviam despido as fardas: 500 militares e 1000 civis, grosso modo.
A noite traz fogo cruzado de artilharia e a tomada do D. Carlos. Comandantes de tropas reais afirmam que não abrirão fogo sobre os marinheiros que desembarquem no Terreiro do Paço. O Directório do Partido Republicano acompanha os acontecimentos toda a noite de 4 para 5 de Outubro, primeiros nos Banhos de S. Paulo (ficaram literalmente nas termas…) e depois no Hotel Europa, por cima dos Grandes Armazéns do Chiado.
Na manhã de 5 de Outubro, debandaram os militares da situação e os ministros, o rei apanhou o barco na Ericeira. Por volta das 8 da manhã, um diplomata alemão conseguiu que as forças monárquicas suspendessem o fogo durante uma hora, para eventuais alemães abandonaram a cidade. Quando tentou, sob escolta monárquica (que, mal chegou ao cimo da Avenida da Liberdade, foi obrigada a mudar de lado), dirigir-se à rotunda para tentar o mesmo com os republicanos, dá-se um equívoco: a bandeira branca que levavam foi interpretada como rendição, o povo inundou o rossio e fez a festa com a tropa, desfazendo as formações militares. O encontro entre Machado Santos e o general Gorjão já não foi sobre um armistício, mas sobre a proclamação da República e a rendição monárquica.
Às 11 horas, José Relvas (acompanhado por Eusébio Leão e Inocêncio Camacho), proclama a República na varanda dos Paços do Concelho: “Unidos todos numa mesma aspiração ideal, o Povo, o Exército e a Armada acabou de, em Portugal, proclamar a República”. O Edital da proclamação da república, assinado por Teófilo Braga, dizia "O Governo Provisório da República Portuguesa saúda as forças de terra e mar, que com o povo instituiu a Republica para felicidade da Pátria. Confio no patriotismo de todos. E porque a Republica para todos é feita, espero que os oficiais do Exército e da armada que não tomaram parte no movimento se apresentem no Quartel-general, a garantir por sua honra a mais absoluta lealdade ao novo regime."
Saíram então “debaixo das pedras” muitos carbonários prontos para defender a república, pousaram para as fotografias e extravasaram alguma violência, tendo sido mortos 2 frades. De resto, a revolução teve 5 feridos à bomba e uma baixa civil. Raul Brandão relatou a revolução no seu diário: “o meu bairro tranquilo: um vizinho sacha as couves com indiferença. (…) Os estragos são insignificantes (…) Só isto!?”
E, adivinhem, nas semanas seguintes multiplicaram-se os republicanos “de sempre”. Adesivagem foi o termo criado. É singular a explicação dum militante brigantino, em 1912, “a massa da população não é republicana, como não e monárquica. É o que quiser o Sr. Fulano e o Sr. Sicrano. E este Fulano e este Sicrano, por sua vez, serão o que for necessário às suas conveniências ou ligações pessoais”.

Obituário: Machado Santos, dos primeiros a desencantar-se com o rumo da República (ao ponto de participar num golpe por ano, entre 13 e 17), e Carlos da Maia (e o líder do governo, diga-se) foram mortos na chamada noite sangrenta de 19/10/1921, onde uma camioneta “fantasma” correu Lisboa a recolher vítimas. Tempos muito estáveis.

4. VIVA A REPÚBLICA




A primeira república não cumpriu as aspirações dos republicanos. Não houve tolerância, pelo menos religiosa (“uma república com padres é o maior dos absurdos”, dizia uma activista em 1883), antes uma aversão primária contra a religião. O injustamente incensado Afonso Costa dixit: “em 2 gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu”.
Instituiu-se a separação entre o Estado e a Igreja, mas o que se procurou foi a inversão do ascendente: o Estado passou a poder intervir nas pastorais, circulares e na organização da igreja, instalando comissões cultuais. Tolerante (!), a República proibiu procissões, toques de sinos, fardamentos dos padres, feriados católicos (o Natal ganhou o nome de festa da família) e o ensino religioso. Todos os bispos foram saneados e foram presos 170 padres que divulgaram uma pastoral proibida pelo governo. Em vez dum Estado neutral, apareceu um Estado sectário, constatou um republicano. No jornal O Dia, escrevia-se que os republicanos preocupavam-se com o L maiúsculo da liberdade, mas não queriam saber do l minúsculo.

Também não houve estabilidade política - os 46 governos dos 16 anos de república transformam os 19 governos nos últimos 30 anos de monarquia numa viagem bucólica –, mas um parlamento que, em vez de legislar, esteve quase sempre dividido em facções e grupos. E lá voltaram as manifestações de rua, as maiorias fabricadas, com a eleição de deputados “suplementares” (1913), a “produção” de votações a troco de cargos, os fechos do parlamento (1915) e as vitórias eleitorais de quem já governava. E golpes, com talvez 1500 mortos entre 1915 e 1920, muito mais letais que a revolução de 5 de Outubro.
E a democracia? António Sérgio sentenciou, "é facto único na história, uma república que restringe o voto em relação à monarquia que deitou abaixo em nome de princípios democráticos". Isto a propósito dos recenseados terem descido para menos de metade, com a retirada de direito de voto aos analfabetos, para evitar o caciquismo – como o chefe do governo Afonso Costa explicou no parlamento, “indivíduos que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma, nem de nenhuma pessoa, não devem ir à urna, para não se dizer que foi com carneiros que confirmámos a república”. Salazar não diria melhor.
A propósito, no mesmo discurso, Costa combateu os teóricos do sufrágio universal, negando o voto às mulheres, porque o seu lugar era no lar, como companheira do homem e educadora dos filhos. Toma.
Manteve-se o apego à ordem pública, só que agora na mão de outros. Aliás, uma das primeiras preocupações foi a mudança do poder, com a entrega de toda a república aos republicanos, de alto a baixo, e somente a eles – até José Relvas admitiu, nas memórias, ter ajudado a instaurar “uma república privativa de parte da nação”. Começando pela substituição das vereações municipais (as eleições tardaram 3 anos, porque sentiam o eleitorado “adverso”, como se constatou num inquérito aos presidentes das comissões administrativas), a destruição de jornais monárquicos (a lei permitiu, desde 1912, a apreensão de jornais contra a ordem, os bons costumes... e a república; em 1916, viria a censura prévia), a ocupação do Estado através da atribuição livre dos empregos públicos aos militantes, a vigilância das ruas por militantes armados do PRP (“a formiga branca”) e a intimidação da magistratura (por exemplo, transferindo os magistrados que não acusaram João Franco, como pedido), até à eleição de candidatos republicanos sem votos, onde não houvesse concorrente, e a prisão política (2382 presos políticos em 1912), com limitação de direitos – mais uma vez o Costa, verberando que os prazos judiciais eram demasiado apertados para a lei ser eficaz, porque “é preciso que eles sintam que nós iremos até onde for preciso".
Ah, regulamentou-se a greve, mas exigiu-se o pré-aviso, proibiram-se os piquetes e prenderam-se dirigentes grevistas – jornais exclamavam “basta de greves”, militantes republicanos armados perseguiam grevistas e o Costa ganhou o cognome de racha-sindicalistas.
Por fim, o progresso: a maior divergência de rendimentos entre Portugal e o resto da Europa, a falta de dinheiro, o êxodo de 1/25 dos portugueses entre 1910 e 1912, o abrandamento do aumento do nº de escolas primárias e da taxa de alfabetização, entre as 2 primeiras décadas de 1900. Quanto a finanças, liberais como sempre: o erro da monarquia fora gastar de mais; o Estado iria gastar apenas o que fosse preciso, como se “fazia numa casa comercial honesta”; o que precisar de aumento de despesa, não, não e não; era preciso deixar de olhar para o Estado como se tivesse uma mina inesgotável; a administração pelo estado era “em regra, má e dispendiosa”, cabendo aos particulares criar riqueza e ao Estado gerar um quadro estável e de confiança. Atingiu-se o superavit em 1913 e 14, sendo aprovada uma lei-travão, que proibia propostas que diminuíssem a receita ou aumentasse a despesa. Quanto a subsídios para instituição de assistência e educação, Afonso Costa dizia “façam quermesses”.
Os republicanos puseram o municipalismo na gaveta e não houve descentralização de facto no país, nem nas colónias – onde se manteve legal o trabalho forçado. A propósito, o nosso Costa contestou os pruridos gerados pela ordem de matar todos os gentios com mais de 10 anos em Angola, na 1ª guerra, com “não nos deixemos mover por idealismos".
O desânimo voltou, como a crítica inflamada. Em 1917, o heterónimo Álvaro de Campos constatava “a falência geral de tudo por causa de todos”.
Foi uma questão de tempo para aparecer alguém e pôr isto com “ordem” e "estabilidade". Infelizmente.