segunda-feira, 30 de agosto de 2010

4. VIVA A REPÚBLICA




A primeira república não cumpriu as aspirações dos republicanos. Não houve tolerância, pelo menos religiosa (“uma república com padres é o maior dos absurdos”, dizia uma activista em 1883), antes uma aversão primária contra a religião. O injustamente incensado Afonso Costa dixit: “em 2 gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu”.
Instituiu-se a separação entre o Estado e a Igreja, mas o que se procurou foi a inversão do ascendente: o Estado passou a poder intervir nas pastorais, circulares e na organização da igreja, instalando comissões cultuais. Tolerante (!), a República proibiu procissões, toques de sinos, fardamentos dos padres, feriados católicos (o Natal ganhou o nome de festa da família) e o ensino religioso. Todos os bispos foram saneados e foram presos 170 padres que divulgaram uma pastoral proibida pelo governo. Em vez dum Estado neutral, apareceu um Estado sectário, constatou um republicano. No jornal O Dia, escrevia-se que os republicanos preocupavam-se com o L maiúsculo da liberdade, mas não queriam saber do l minúsculo.

Também não houve estabilidade política - os 46 governos dos 16 anos de república transformam os 19 governos nos últimos 30 anos de monarquia numa viagem bucólica –, mas um parlamento que, em vez de legislar, esteve quase sempre dividido em facções e grupos. E lá voltaram as manifestações de rua, as maiorias fabricadas, com a eleição de deputados “suplementares” (1913), a “produção” de votações a troco de cargos, os fechos do parlamento (1915) e as vitórias eleitorais de quem já governava. E golpes, com talvez 1500 mortos entre 1915 e 1920, muito mais letais que a revolução de 5 de Outubro.
E a democracia? António Sérgio sentenciou, "é facto único na história, uma república que restringe o voto em relação à monarquia que deitou abaixo em nome de princípios democráticos". Isto a propósito dos recenseados terem descido para menos de metade, com a retirada de direito de voto aos analfabetos, para evitar o caciquismo – como o chefe do governo Afonso Costa explicou no parlamento, “indivíduos que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma, nem de nenhuma pessoa, não devem ir à urna, para não se dizer que foi com carneiros que confirmámos a república”. Salazar não diria melhor.
A propósito, no mesmo discurso, Costa combateu os teóricos do sufrágio universal, negando o voto às mulheres, porque o seu lugar era no lar, como companheira do homem e educadora dos filhos. Toma.
Manteve-se o apego à ordem pública, só que agora na mão de outros. Aliás, uma das primeiras preocupações foi a mudança do poder, com a entrega de toda a república aos republicanos, de alto a baixo, e somente a eles – até José Relvas admitiu, nas memórias, ter ajudado a instaurar “uma república privativa de parte da nação”. Começando pela substituição das vereações municipais (as eleições tardaram 3 anos, porque sentiam o eleitorado “adverso”, como se constatou num inquérito aos presidentes das comissões administrativas), a destruição de jornais monárquicos (a lei permitiu, desde 1912, a apreensão de jornais contra a ordem, os bons costumes... e a república; em 1916, viria a censura prévia), a ocupação do Estado através da atribuição livre dos empregos públicos aos militantes, a vigilância das ruas por militantes armados do PRP (“a formiga branca”) e a intimidação da magistratura (por exemplo, transferindo os magistrados que não acusaram João Franco, como pedido), até à eleição de candidatos republicanos sem votos, onde não houvesse concorrente, e a prisão política (2382 presos políticos em 1912), com limitação de direitos – mais uma vez o Costa, verberando que os prazos judiciais eram demasiado apertados para a lei ser eficaz, porque “é preciso que eles sintam que nós iremos até onde for preciso".
Ah, regulamentou-se a greve, mas exigiu-se o pré-aviso, proibiram-se os piquetes e prenderam-se dirigentes grevistas – jornais exclamavam “basta de greves”, militantes republicanos armados perseguiam grevistas e o Costa ganhou o cognome de racha-sindicalistas.
Por fim, o progresso: a maior divergência de rendimentos entre Portugal e o resto da Europa, a falta de dinheiro, o êxodo de 1/25 dos portugueses entre 1910 e 1912, o abrandamento do aumento do nº de escolas primárias e da taxa de alfabetização, entre as 2 primeiras décadas de 1900. Quanto a finanças, liberais como sempre: o erro da monarquia fora gastar de mais; o Estado iria gastar apenas o que fosse preciso, como se “fazia numa casa comercial honesta”; o que precisar de aumento de despesa, não, não e não; era preciso deixar de olhar para o Estado como se tivesse uma mina inesgotável; a administração pelo estado era “em regra, má e dispendiosa”, cabendo aos particulares criar riqueza e ao Estado gerar um quadro estável e de confiança. Atingiu-se o superavit em 1913 e 14, sendo aprovada uma lei-travão, que proibia propostas que diminuíssem a receita ou aumentasse a despesa. Quanto a subsídios para instituição de assistência e educação, Afonso Costa dizia “façam quermesses”.
Os republicanos puseram o municipalismo na gaveta e não houve descentralização de facto no país, nem nas colónias – onde se manteve legal o trabalho forçado. A propósito, o nosso Costa contestou os pruridos gerados pela ordem de matar todos os gentios com mais de 10 anos em Angola, na 1ª guerra, com “não nos deixemos mover por idealismos".
O desânimo voltou, como a crítica inflamada. Em 1917, o heterónimo Álvaro de Campos constatava “a falência geral de tudo por causa de todos”.
Foi uma questão de tempo para aparecer alguém e pôr isto com “ordem” e "estabilidade". Infelizmente.

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