Este livro é uma óptima escolha, mesmo para quem não seja fã da época: excelente enredo para qualquer novela, tem drama e horror, traição e amor, assassinatos e suicídios, parricídios, matricídios e infanticídios, ascensão e queda, bons e maus. Tudo acompanhado por sonhos, presságios, acontecimentos premonitórios certeiros e milagres (Vespasiano curou em cego e um coxo, palavra!).
Para os outros, não há livro sobre a Roma antiga que não refira ou cite 'As Vidas dos Doze Césares' de Suetónio. Assim sendo, nada melhor para um simpatizante dessa época, do que 'ir à fonte'.
Claro está que não se pode acreditar em tudo*, a história oral é equívoca, Suetónio não assistiu às estórias (nasceu no final, ou mesmo depois, do principado de Nero) e os cronistas oficiosos, como Fernão Lopes, tendem a contar a história a gosto do seu amo e a tomar partidos (ex., o autor afirma que César abusou do poder e 'mereceu ser assassinado').
Porém, se alguém tinha acesso aos documentos existentes, era ele, que foi superintendente das bibliotecas públicas de Roma, responsável pelos arquivos e chefe da chancelaria imperial, tendo sob a sua alçada toda a correspondência oficial.
Ali aparecem, em primeira mão, frases de César tantas vezes repetidas, como 'Andemos para onde nos chama os desígnios dos deuses e a iniquidade dos nossos inimigos. A sorte está lançada.', quando passou o Rubicão, 'Vim, Vi, Venci', sobre a conquista do Ponto, no nordeste da Turquia, ou 'Porque considero que os meus devem estar isentos não só do crime, mas também da suspeita', justificando o divórcio de Pompeia, com razão acusada de adultério (frase depois alterada para 'a mulher de César não basta ser honesta, tem que parecê-lo').
Lá também parecem 2 conhecidas frases de Augusto ('Apressa-te lentamente - mais vale um chefe prudente que temerário' e 'Deixei uma cidade de mármore onde encontrei uma de tijolos') e um curioso ditado sobre a celeridade das coisas, 'mais depressa do que se cozem espargos', bem como o verso duma tragédia, 'Que me odeiem, desde que me temam', usada por Tibério (trocando temam por respeitem) e Calígula, depois glosada por Maquiavel e Napoleão - no caso de Tibério, o seu caracter cruel era já conhecido em criança, pelo menos pelo seu mestre de retórica, que o descreveu como 'lama diluída em sangue'.
Permita-se-me mais um exemplo: 'o dinheiro não tem cheiro' foi a explicação prática que Vespasiano deu ao filho, quando este se indignou pela imposição duma taxa sobre as latrinas públicas.
Um iniciado não fica surpreso com a endogamia dos césares - a elite casava-se várias vezes e entre si, como Octávio e Pompeu, que desposaram as filhas um do outro -, que pode explicar as suas taras: Tibério organizava bacanais com crianças, Calígula tratava uma irmã como esposa legítima e prostituiu as outras 3, Tibério e Nero tinham relações mal resolvidas com a mãe - no caso de Nero, antes de mandar matar a mãe (após 5 'acidentes' gorados), parece que tinha relações incestuosas com ela.
Nesse campeonato, Calígula leva a taça: mandou recolher as melhores estátuas gregas de deuses e substituir as suas cabeças pela dele, e quis tornar cônsul o seu cavalo Incitato, a quem ofereceu um estábulo de mármore e marfim, mais um palácio mobilado e com escravos. Mas Nero perde no photofinish: não era esquisito, abusava de 'rapazes de nascimento livre' (supõe-se que Suetónio não veria mal se fossem escravos) e casou-se formalmente com um rapaz que castrara; fazia turnés em concursos de música e teatro, com um nervosismo desproporcionado - a plateia não só ficava até ao fim (o recinto era encerrado durante a sua actuação), como obviamente ganhava a competição. Aliás, a vitória, sempre: mesmo desistindo a meio, como fez numa corrida de carros num jogos olímpicos, foi coroado.
Um iniciado também já sabe como era perigosa a vida dum imperador: Júlio César foi assassinado, o fim de Tibério talvez tenha sido apressado pelo sobrinho Calígula, que foi assassinado como o seu sucessor Cláudio, envenenado pela 5ª mulher Agripina (a 3ª mulher, Messalina, teria já conspirado contra ele), mãe de Nero, que pediu ajuda ao secretário para matá-lo, depois das suas patéticas tentativas de suicídio; o seu sucessor Galba foi assassinado, seguiu-se o suicida Otão e depois Vitélio, também assassinado, como o 3º dos flávios. Dos 12, só Augusto, Vespasiano e Tito (o único incensado pelo historiador) não tiveram um fim 'apressado'.
Para sobreviver, vários Césares eliminaram os adversários potenciais (Tibério e Germânico, Calígula e Gemelo, Nero e Britânico, Otão e Pisão). De facto, Calígula e Cláudio só lá chegaram porque sobreviveram às purgas 'fazendo-se de mortos' (o caracter titubeante de Cláudio, que era pau-mandado das mulheres e dos seus libertos, é bem expresso numa sua sentença judicial, 'Opino como aqueles que têm razão'). Também Galba tentou não dar nas vistas como governador da Hispânia, para não suscitar a inveja de Nero, repetindo que ninguém podia ser chamado a prestar contas por não ter feito nada.
Nesse aspecto, e pagando com a vida, Júlio César foi diferente: era magnânimo com os adversários derrotados e, ao contrário de Pompeu, declarou seus amigos quem se abstivesse na guerra civil.
Suetónio enumera vários casos para retratar os imperadores como humildes, ponderados, clementes ou cruéis. Tendo um poder quase divino, o mesmo César dava a vida ou a morte conforme o humor do momento, como um vulgar capricho - Calígula bem respondeu à avó que o recriminara, 'Lembra-te de que posso tudo e tenho poder sobre todos'.
As sentenças podiam ser tão irreflectidas que Cláudio mandava convidar para jogar dados pessoas que não apareciam... porque as mandara matar na véspera. Os mais próximos estavam mais expostos ao risco de vida, incluindo a parentela e os senadores, alvo de grandes purgas, através de exílio, execução ou intimação ao suicídio. Os motivos eram tão graves como ter 'um semblante severo' ou criticar a equipa de carros de que o imperador era adepto... porque tinham-no feito para atacá-lo pessoalmente.
Comum a quase todos, começavam por deplorar os exageros do antecessor, 'perdendo-se' durante o reinado, incluindo numa crescente voracidade fiscal: exemplo, Tibério recusou inicialmente a aumentar os impostos, porque 'um bom pastor tosquia as suas ovelhas, não as esfola', mas acabou por cessar isenções fiscais, provocar testamentos a seu favor e confiscar fortunas sob os pretextos mais absurdos.
Ali são descritos manias (um édito de Tibério proibia as pessoas de se aproximarem dele) e alguns hábitos cruéis, como a dizimação de coortes menos bravas (i.e., a execução de 1 em cada 10 soldados) ou o castigo de parricidas, atirados ao rio dentro de um saco de couro com um cão, um galo, uma cobra e um macaco.
Surpresa, surpresa, César tinha os membros bem torneados e o rosto um pouco cheio, ao contrário da imagem esguia desenhada por Albert Uderzo, era apodado de bissexual promíscuo (Curio, num discurso, trata-o como 'o marido de todas as mulheres e a mulher de todos os maridos') e, num aperto 'lançou-se ao mar e nadou duzentos pés, até ao navio mais próximo, mantendo a mão esquerda levantada para não molhar os escritos que levava' - o famoso naufrágio de Camões foi uma curiosa coincidência (a história repete-se), ou falta de imaginação?
* a versão sensacionalista de Suetónio, de que Nero mandou incendiar Roma, porque os edifícios eram feios e as ruas estreitas, é contrariada pelo historiador Tácito (mais reticente em veicular os diz-que-disse mais picantes, e mais brando com Messalina, por exemplo), que terá razão - o imperador nem estava na cidade, e foi expedito no plano de combate às chamas.
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A Morte de César, 1959-67, Jean-Léon Gérôme |
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Proclamando Cláudio Imperador, 1867, Sir Lawrence Alma-Tadema
(Cláudio escondeu-se atrás dum reposteiro, para fugir aos guardas que mataram
o sobrinho Calígula; descoberto, não foi eliminado, mas feito imperador) |
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Escultores na Roma Antiga, 1877, Sir Lawrence Alma-Tadema |