...e depois, com bigodes de leite, pedem mais paciência e esforço ao povo, que a "vaca 'tá seca".

quinta-feira, 12 de junho de 2014

A RUA DA HORTA DO BISPO

 

A restaurada* Rua das Flores faz-me lembrar a epígrafe do 'Ensaio sobre a Cegueira', que Saramago catou no 'Livro dos Conselhos' de D. Duarte: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Conhecer a história dos lugares é como ter uma lente bifocal, permite ver o todo e o pormenor, que nos escaparia de outra forma.

D. Manuel quis e a obra nasceu: entre 1521 e 1525, é aberta na urbe uma nova rua, em plena horta do bispo, para unir o mosteiro masculino de S. Domingos à Porta dos Carros da muralha fernandina... ou ao novel mosteiro feminino de S. Bento da Avé-Maria, iniciado em 1518 - outra das 'determinações' de D. Manuel em terrenos do bispo.
O nome original da rua, de Santa Catarina das Flores, lembra a horta florida do prelado e a sua devoção, Santa Catarina de Alexandria (onde nasceu) ou do Monte Sinai (onde o seu corpo incorrupto terá sido encontrado).
A rua foi ocupada por nobres (uma novidade, até então era proibido a sua pernoita na cidade) e a burguesia em ascensão. Mas várias casas eram propriedade do bispo ou do cabido, e tinham a sua marca: respectivamente, uma roda (onde Catarina seria torturada, não fosse ter-se partido quando a santa fez o sinal da cruz...) ou o arcanjo Miguel. Esses sinais ainda se encontram em 6 ou 7 casas, ao longo da rua - e nunca tinha reparado neles, até saber da sua existência.
Há outro pormenor, que pode não passar duma caluniosa coincidência: a casa dos Cunha Pimentéis (erguida em quinhentos e comprada em 1699 por Jerónimo da Cunha Pimentel), virada para o Largo de S. Domingos, tem o brasão setecentista na esquina: e brasão de esquina era sinal de bastardia, enquanto herdeiros legítimos tinham o brasão na fachada.

* Não há rua no casco histórico do Porto sem casas com vidros partidos ou portas entaipadas. Na rua das Flores, é o caso da casa dos Maias (levantada em quinhentos por Martins Ferraz, restaurada no séc. XVIII e vendida a Domingos Maia, um 'arquitecto amador', no século seguinte), cujo pesado brasão da primeira família recorda como o dinheiro muda de mãos.
 

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