Uma das minhas imagens literárias mais antigas, dum texto que li na escola (teria uns 12 anos), é uma velhinha na 'soleira da porta', com o seu 'pequeno casulo de interesses'. Só há pouco descobri que a crónica era de Saramago, que eu 'adoptei' uns anos mais tarde. Valeu a pena relembrar.
Carta para Josefa, minha avó
Tens noventa anos. És velha, dolorida.
Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes
ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça
toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os
dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste
pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava
gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de
família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes
engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não
entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem
de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário
elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também
aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.
Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações
que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um
som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome
sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.
(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu
pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O
teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou
diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo.
Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da
vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação,
um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas
palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã
e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face
enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e
continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por
que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda
eu, e dir-te-ia como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas
inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo
continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais
importava.
Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas
palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que
me não acusas - e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na
soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que
nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores
assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo
da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena
de morrer!»
É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.
Zé
In A Capital, 14 de Março de 1968
5.5.1954, Álvaro Cunhal, série desenhos da prisão
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