segunda-feira, 11 de julho de 2011

MNAA 2. A CUSTÓDIA DE BELÉM

Imaginem que um régulo de Quiloa (hoje Kilwa Kisiwani, na Tanzânia) resolvia dar como prova de vassalagem ao rei português, D. Manuel, 500 moedas de ouro (ou 1500 meticais, noutra versão). Imaginem que Vasco da Gama passava por aquelas bandas no regresso da sua viagem à India, em 1503, e trazia o tributo.
Imaginem que o rei resolvia fundir as moedas, 30 marcos ou mais de 6 quilogramas de ouro das páreas, e fazer um ostensório  ou custódia (guarda em latim) - o copo usado para expor o filho de Deus, eucaristicamente presente na hóstia consagrada -, para ter na sua capela privada.
Imaginem agora que D. Manuel escolhia como ourives nada mais, nada menos, que Gil Vicente (descrito como "trovador e mestre da balança" na carta régia de 1513 que o nomeou Mestre da casa da moeda de Lisboa), que enxertava nos seus autos os conhecimentos específicos sobre técnicas de ourivesaria. 
3 anos de arte e, no ano da graça de Deus de 1506, o auto-intitulado Rei de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além mar em África, Senhor da Guiné e da conquista, da navegação e do comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da India pode apreciar A obra-prima da ourivesaria portugesa, ao estilo gótico tardio.
O rei morreu em 1521 e legou a custódia em testamento ao mosteiro de Santa Maria de Belém dos frades jerónimos, ajaezada com uma cruz também feita por Gil Vicente (perdida), e a hoje conhecida por Bíblia dos Jerónimos. 
Em 1834, com a extinção do mosteiro, a peça foi parar à casa da moeda, e foi salva da fundição pelo rei consorte Fernando II de Saxe-Coburgo-Gotha, que a levou para o Palácio das Necessidades, para a sua colecção.
Em 1925, a custódia mudou para o MNAA. Por essa altura, foi reposta a forma original: em 1620, o hostiário de cristal fora substituído por outro de prata dourada, e a peça foi dopada com mais 10 cm e 993 g de prata.
Um segundo e (desta vez) científico restauro foi operado em 2008, para lifting do natural desgaste de meio milénio, que ameaçava a sua integridade, e voltou ao museu em 2009, novinha em folha. 

Como é diferente ver arte com audioguide, aqui vai:
É dividida em 3 partes. Primeiro, uma base polilobada e elíptica, com 6 meios-relevos naturalistas (caracóis, pavões, frutos e flores) e uma tarja no seu extradorso, com a legenda "O MVITO ALTO. PRICIPE. E. PODEROSO. SEHOR. REI. DÕ. MANUEL I A. MDOV. FAZER. DO OVRO I. DAS. PARIAS. DE QUILOA. AQVABOV. E. CCCCCVI.".
A haste hexagonal, com fenestrações e nó ressaltado, termina com 6 esferas armilares em esmalte - divisa real que une e separa o mundo terreno, encimado pelo poder régio, e o mundo celeste.
Acima, a santíssima trindade: o corpo central, com 12 apóstolos esmaltados policromados, rodeando o cilíndrico hostiário de cristal, e um duplo baldaquino hexagonal com pináculos e arcaria gótica, em dois andares, o inferior com a pomba do Espírito santo, de ouro esmaltado a branco, e o superior com Deus-pai coroado, sentado num trono e segurando a orbe numa das mãos - à sua volta ainda restam 3 dos 6 profetas originais.
Nas 2 finas pilastras, que ladeiam e sustentam o baldaquino, é representada a Anunciação, com a Virgem e o arcanjo S. Gabriel, rodeados de anjos músicos.
O topo é rematado com uma cruz latina esmaltada.





http://tv1.rtp.pt/noticias/?t=Custodia-de-Belem-foi-restaurada-e-regressou-ao-Museu-de-Arte-Antiga.rtp&headline=20&visual=9&article=220767&tm=4

2 comentários:

  1. Algumas precisões e notas:

    "D. Manuel, 500 moedas de ouro (ou 1500 meticais, noutra versão)"
    1500 meticais, confirmado por documento de 1504.

    "em 1620, o hostiário de..."
    A última monografia sobre a peça não consegue precisar esta data, deve ser um erro.

    "com a Virgem e o arcanjo S. Miguel": com a Virgem e o arcanjo S. Gabriel.

    A descrição mais antiga que se conhece da custódia leva a pensar que a cruz que a remata não é a original.

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  2. Grato pelas preciosas correcções.
    Não recordo onde fui desencantar a informação do restauro, mas Carlos Tavares (http://valorreal.blogs.sapo.pt/5101.html)refere o restauro de 1620, dando como fonte 'Museu Nacional de Arte Antiga, livro "História das Marcas e Contrastes" de Maria Nogueira Pinto'.

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