sábado, 23 de maio de 2015

MAO COMO AS COBRAS


'Mao A História Desconhecida' é talvez, pela sua dimensão e anos de aturada pesquisa, a obra da vida de Jung Chang e do seu marido Jon Halliday. Objectivo, desconstruir o grande embuste que Mao criou sobre si próprio, e que contagiou tanta gente por essa Europa fora, na década de sessenta: o mito sobre o 'poder popular', a aliança entre os camponeses e operários para a tomada do poder, a sintonia entre o partido e as aspirações do povo.
Afinal, Mao era outro, e só não era um ditador como os outros, porque era um ditador pior que os outros, fazendo do seu Mestre Estaline, como bajuladoramente o tratava, um menino de coro.

Sobressai da biografia o Terror sobre todos, desde o seu politburo (que foi variando) até à base da pirâmide social - que manteve, bastante achatada, já que a igualdade era apenas discursiva.
Todos sabiam que, numa penada, podiam ser acusados de proprietário rural, anti-bolchevique, espião, contra-revolucionário, direitista ou conspirador. Além das delações e autocríticas obrigatórias (e não és leal de não tiveres nada a contar...), arranjar provas não era complicado, a tortura era formalmente recomendada e os detidos eram como as cerejas, uns traziam outros. Um kafkiano Mao justificou o método: caso as vítimas fossem incapazes de aguentar a tortura e faziam confissões falsas, isso provava que eram culpadas, pois 'como é possível que revolucionários leais façam confissões falsas, para incriminar outros camaradas?'
Claro está, as condenações eram públicas, para hipertrofiar a humilhação do condenado e para avisar a plateia, atenção!, podes ser tu o próximo. Recorrer da decisão era uma possibilidade legal, mas uma impossibilidade prática - sendo a dúvida sobre o 'discernimento' do partido uma ofensa, o resultado seria o agravamento da pena.
Aliás, as purgas metódicas (e os líderes locais que não eliminassem uma certa percentagem pré-determinada de pessoas seriam eles próprios punidos por deslealdade) começaram bem antes de Mao conquistar a China e atingiam os seus próximos - Mao confessou que, na década de 40, não esmagara só 80% do partido, 'foram de facto 100% e através da força'.
Obviamente, a rotação no topo do partido era estonteante, sendo saneados todos os companheiros com opiniões próprias ou (na cabeça de Mao) com ambições pessoais - ora eliminados de forma definitiva, ora repescados após a submissão completa e enquanto essa acefalia se mantivesse, sujeitos a regulares humilhações e ameaças.
Outros métodos de Mao para eternizar-se no poder são inespecíficos: sofrendo vários revezes na sua escalada, através de votação dos seus pares, Mao rotulou o voto de 'ultrademocracia' e aboliu essa prática, logo que pôde; nada podia escapar ao seu radar, desconfiava de todos e só a sua palavra contava, chegando a escrever ao seu n.º 2 da época, que pensava estar excessivamente autónomo, 'Todos os documentos só podem ser emitidos depois de eu os ter visto. Caso contrário, são inválidos. Tem cuidado'*.

Sobre o líder militar, o livro é elucidativo: Mao nunca esteve na frente da batalha, fugia ao combate, tomava medidas erráticas e suicidas - milhares de soldados foram premeditadamente enviados para a morte, para Mao descartar potenciais concorrentes.
Quanto à empatia com o povo, é lapidar a frase do grande líder, a lembrar Maria Antonieta: 'Só têm folhas de árvores para comer? Então que seja' (na guerra civil, recomendou que os seus soldados esfomeados estacionados na Manchúria que se alimentassem de girinos!). Mao foi indiferente às dezenas de milhões de chineses que morreram** de fome, a quem confiscou quase todo o cereal, óleo ou carne de porco... para doações (a países mais ricos, como a Hungria ou a Albânia), exportação ou compra de armas.
Enquanto Mao queria quase todo o cereal, dizendo que o povo não ficava 'sem comida durante todo o ano - apenas 6... ou 4 meses', altos funcionários pediram-lhe mais vagar no esbulho alimentar, invocando a consciência. Mao respondeu 'É melhor que tenham menos consciência. Alguns dos nossos camaradas têm demasiada misericórdia, não têm brutalidade suficiente, o que significa que não são tão marxistas (...) Nesta questão, não temos, na verdade! O marxismo é brutal a esse ponto.' Uma maldade à altura de Vlad, o empalador, não?
Mao queria o cereal para comprar armas e estimou quanto dava para ir 'às compras' - vai daí, mandou triplicar a produção. Fazia os orçamentos assim, não percebia absolutamente nada de economia (como reparou o conselheiro-mor russo) e queixava-se que os relatórios dos ministérios tinham 'apenas listas e números monótonos, e nenhuma história.' Risível, não fossem as consequências graves dessa ignorância...
Não será surpresa num ditador, Mao não gostava de socializar de perto com as massas, e foi desde o começo paranóico com a sua segurança e com pavor de ser assassinado.
Nem a imagem do desapego ao luxo era verdadeiro: Mao usava sapatos velhos porque eram confortáveis (mandava os guarda-costas usarem o calçado novo, para moldá-los), gostava de almofadas usadas (mas os remendos feitos em Xangai eram mais caros que comprar novas); só comia peixe fresco, mandando vir peixes vivos em caixas oxigenadas, pescados a centenas de quilómetros de distância; 'sugeria' visitas a algumas regiões, obrigando à construção de mansões adequadas, mas depois mudava de ideias e, algumas, nunca chegou a estrear; via filmes estrangeiros e lia muitos livros, mas acusou todas as formas de arte - óperas, teatro, artes populares, música, pintura, escultura, dança, cinema, poesia e literatura - de serem feudais ou capitalistas, e decidiu acabar com elas, pois o povo devia ser ignorante e era precisa a política de 'manter as pessoas estúpidas'. Para tratar do assunto, Mao começou por acicatar a violência civil ('Pequim não está suficientemente caótica...', queixou-se) pelos adolescentes Guardas Vermelhos, contra professores, artistas e intelectuais - o embrião da Revolução Cultural.
E que dizer dum homem que abandona, obrigando as mulheres a fazer o mesmo, vários filhos recém-nascidos, não querendo saber mais deles? 
O livro é bem fundamentado, bem escrito e bem traduzido. Se este cheirinho não convenceu os apreciadores de história e lê-lo, a culpa é minha.

* Faz lembrar o absolutista Luís XVI, que disse aos seus ministros ´Peço e exijo que nenhuma norma seja aprovada a não ser por minha ordem'. 
** À pala das purgas, da fome (cujo pico resultou da política do 'grande salto em frente', com 22M de mortos só em 1960) e dos campos de trabalho durante a Revolução Cultural, estima-se que foram mortos 70 milhões de chineses. Nada de inquietante para Mao, como provam algumas tiradas: 'As mortes têm benefícios, podem fertilizar os solos', 'Trabalhando desta forma, metade da China pode muito bem ter que morrer', 'Não se inquietem tanto com uma guerra mundial, no máximo, morrem pessoas' ou '[um eventual ataque nuclear à China] é apenas uma grande pilha de pessoas a morrer'.
 

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