quarta-feira, 9 de abril de 2014

PRRRREC

'O que há de certo modo tranquilizador, no meio do ambiente de confusão que muitas vezes emerge, é que a dita confusão é mais aparente que real. A menos que se diga, pelo contrário, que a confusão é tão confusa que nem conseguimos identificar-lhe a verdadeira dimensão.', dizia-se no DN de 27.1.75.
 
Bom resumo da barafunda do Processo Revolucionário em Curso (PREC), nesse ano vertiginoso de 1975. O que hoje parece um filme divertido - só fumaça, que o povo é sereno -, foi na verdade uma encruzilhada perigosa.
As eleições para a assembleia constituinte, a 25/4, foram um duche gelado para as forças 'progressistas'. No início da campanha, o MES avisava que 'as eleições favorecem as forças reaccionárias' e defendia ser 'fundamental criar o poder operário popular', e o premonitório Sottomayor Cardia lembrava a revolução russa e a perenidade da sua assembleia constituinte (nessas eleições, os mencheviques e os socialistas revolucionários tiveram 62% dos votos, e os bolcheviques 25%), perante o avanço de Lenine & Cª (2/4). Dias depois, Vasco Gonçalves diz que 'Não podemos perder por via eleitoral aquilo que tem custado a ganhar ao povo português' (8/4), no que é seguido por Rosa Coutinho, 'a consulta a um povo pouco esclarecido não pode comprometer o processo revolucionário' (11/4).

No rescaldo das eleições (PS 37,9%, PPD 26,4%, PCP 12,5%, CDS 7,6%, MDP/CDE 4,1%, MES 1%, UDP 0,8%, LCI 0,2%), a amuada LCI afirma que 'As eleições não são via de reforço da luta dos trabalhadores e correspondem a um período de ilusões na classe operária sobre as possibilidades de passagem pacífica ao socialismo' e o MES, pela boca de Augusto Mateus (sim, esse), reclama que 'As eleições são inoportunas no actual contexto do avanço do processo revolucionário' (26/4)
Numa entrevista (gravada) a Oriana Fallaci, e depois negada, Cunhal é cristalino: 'As eleições para mim não têm qualquer importância, nenhuma mesmo (...) Se pensa que o PS com os seus 40% e o PPD com os seus 27% compõem a maioria, está a cometer um erro. Eles não têm a maioria (...) a Assembleia Constituinte certamente que não será um órgão legislativo e não será uma Câmara de deputados (...) Prometo-lhe que em Portugal não haverá qualquer parlamento' (27/6).
No estertor dos seus governos, Vasco Gonçalves reitera que 'não existe lugar para uma democracia burguesa em Portugal' (29/8).
Já em contramão, Rosa Coutinho explica 'Ser-se revolucionário de acordo com as maiorias é um contra-senso. Um revolucionário pode ter que estar durante muito tempo com as minorias esclarecidas' (5/10).      
 
No campeonato do esquerdismo, a UDP achava de si própria 'não é um partido de extrema-esquerda, é de esquerda e à nossa esquerda não há mais esquerdas. Para além de nós, só de direita' (28/2) - o MRPP chamava social-fascistas aos comunistas (moderados por razões tácticas, e refreados pelos soviéticos, que queriam manter a détente na europa), com a mesma ligeireza que Spínola, em 74, chamava forças contra-revolucionárias aos 'irresponsáveis esquerdistas'. O PPD participava em manifestações de apoio à nacionalização da Banca e dos seguros (18/3) e Mário Soares lembrava que a nacionalização da Banca estava no programa do PS, mas não do PCP (27/3).
O PPD aplaudiu as nacionalizações anunciadas em Abril, confiando que se traduzissem 'no início de uma autêntico socialismo e não no capitalismo de Estado' (16/4); Marcelo R. Sousa via no PPD um 'partido à procura de um lugar à esquerda', aquando da escolha dum substituto para Sá Carneiro,  e o novel líder, Emídio Guerreiro, pretendia  um 'partido francamente de esquerda' (25/5) - porém, como disse alguém, as bases dos partidos estavam mais à direita que os líderes, e os seus eleitores mais à direita ainda. No 1º congresso da JSD, cartazes de Marx e Engels compunham o cenário, e foi escolhido como hino a Internacional (1/6), e o PPM tinha a sua Juventude Monárquica Revolucionária.  
Embriagados (ou temerosos) pela alegria revolucionária, no congresso da CIP, os empresários advogaram a 'distribuição da riqueza' (10/7).    
 
E o povo, pá? O povo, ou parte dele, vivia em clima de pré-guerra civil: colocação de bombas à esquerda e à direita, barricadas em Lisboa e Rio Maior (um no passarán com mocas), destruição de sedes partidárias, invasão de herdades e de casas, cerco do parlamento, mortos (sim) e feridos, confrontos e petardos em comícios. A animosidade chegou ao ponto de, na Madeira, se escrever 'Vem à manifestação do PPD. O trânsito nas estradas é livre, se os comunistas te impedirem de passar, passa por cima deles' (2/8).
A igreja, que antes vedara aos católicos dar o voto a partidos incompatíveis com uma concepção cristã (12/4), fazia agora os seus comícios, recusando uma 'igreja algemada' e exigindo 'autoridades mandatadas pelo povo como seus representantes e não como tutores' (10/8). 
 
A ponderação era privilégio de poucos, como Melo Antunes, falasse ele de pão ('não vai haver milagres porque ninguém dispõe de fórmulas mágicas para resolver o problema da economia portuguesa', 21.2), ou falasse de política, esperando que 'existam reservas de lucidez para destrinçar entre o possível e o quimérico, entre a utopia demagógica, paralisadora e, consequentemente, funesta e o senso do real, o suicídio a que o aventureirismo conduz e o enfrentamento honesto, ainda que impopular, das circunstâncias. O país está emocionalmente exausto' (DN, 8/3).
Para a vitória dos moderados, houve 2 personagens fulcrais, fiéis da balança: o Presidente Costa Gomes (sub-secretário de Estado de Salazar e CEMGFA de Caetano, by the way), cerebral, equilibrista entre campos antagónicas (embora suspeito de simpatia pelo PCP), avesso a decisões, tímido apoiante dos mais fortes, a cada momento; Otelo, um radical errático, fã de Fidel, defensor das colunas populares, ora autorizando a participação de militares numa manifestação onde se defendeu a dissolução do governo e da assembleia e a instalação duma ditadura do proletariado (17/7), ora contra o governo de Vasco Gonçalves, ora apoiante da distribuição de armas ao povo, ora contra o documento dos 9, ora negociando com os seus autores, ora faltando ao 25/11, o derradeiro combate da sua esquerda popular. Como diria Eanes, sendo um homem da extrema-esquerda, Otelo nunca assumiu coerentemente o que seria a estratégia dessa área, a que se somava a sua incoerência ideológica.
 
Quanto às colónias, além do patrocínio de uma das partes em conflito, considerava-se que tudo devia ser feito para facilitar a integração de Timor na Indonésia (terá dito o companheiro Vasco), pretendia-se uma descolonização rápida, e os retornados eram corpos estranhos nas suas* terras e na metrópole - 'Se eles comeram a carne, agora que roam os ossos', terá dito o PM Pinheiro de Azevedo, enquanto eles se manifestavam com cartazes onde se lia 'Trabalhar não foi crime nem roubo'.
Anos depois, o lúcido Melo Antunes reconheceu que 'o processo da descolonização foi das coisas mais difíceis, mais dramáticas e mais trágicas que aconteceram em Portugal',  mas também já havia dito antes que 'não há descolonizações bem feitas', porque 'não houve, ou não há, boas colonizações'.

notas sortidas de 1975 O Ano do Furacão Revolucionário, João Céu e Silva

* Rentes de Carvalho (em Portugal A Flor e a Foice), conta que, em Abril de 1974, um apaziguador Agostinho Neto declarava em Londres 'Evidentemente que quando digo o nosso povo são todos os que nasceram em Angola e se consideram angolanos. Os pretos, que tradicionalmente são considerados africanos e os brancos que estão há cinco séculos no nosso continente e no nosso país.'

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