quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

PARTES PRIVADAS



- Eu não vejo as coisas bem figuradas. Para que hei-de estar a dizer o contrário? Negócios com o governo nunca me agradaram. O Governo! Quem é o Governo? O Governo afinal não é pessoa que se penhore; por isso voto que...
- Mas repare - dizia o director com exemplar paciência - repare que as garantias oferecidas são das mais seguras. O Governo compromete-se.
- E adeus minhas encomendas! - tornou o outro. - Ora que cisma! Mas quem é o Governo? Eu não sei quem é o Governo! Uns valdevinos, que hoje são tudo e amanhã são nada... Faz-se o contrato com uns e amanhã respondem por ele caras novas. Não me entendo com isso.

Este comerciante d'Uma Família Inglesa, se não era um espécime raro no século XIX, seria agora um caso de estudo. Na verdade, a livre empreendedorismo é faladura, num país em que quase toda a gente depende do Estado, via reformas, salários, subvenções, benefícios ou contratos. O que não os impede de censurar o desmesurado peso do Estado - à custa dos MEUS impostos, dizem todos, mesmo que não os paguem integralmente -, qual grilheta que os prende (mas quem está amarrado a quem?), sejam grandes ou pequenos.
Vem isto a propósito duma obra e graça do Espírito Santo: diz o Jornal de Negócios de 29.1.2014 que, dos 279,5 milhões de euros decorrentes das vendas e serviços prestados pelo Espírito Santo Saúde (ESS) nos primeiros nove meses de 2013, 53,8% vieram direta ou indiretamente dos cofres do Estado, avança o Jornal de Negócios: 29,5% através dos subsistemas de saúde pública (como a ADSE, SAD e ADM), 22,7% das parcerias público-privadas (no caso, o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures) e 1,6% dos proveitos decorrentes de contratos e convenções com o SNS para reduzir as listas de espera. Conclusão, o líder no mercado privado de saúde em termos de rendimento depende (rufo de tambores) do erário público e dos seus funcionários.
O 4º maior operador privado é a Sanfil, um grupo familiar coimbrão, que cresceu meteoricamente com a gestão de listas de espera de cirurgias, de que é o maior beneficiário (a história inclui a 'proximidade' com deputados, responsáveis de ARS e dos HUC, e a 'ronha' dos processos de aprovação de 2 concorrentes).
Quais 3 estarolas, à Saúde, juntam-se a Educação, em que também há privados no regaço do Estado, e as Obras Públicas, um nó de empresas (e sindicatos bancários associados) que sobreviveram décadas à sombra do Estado. Aqui e ali, omnipresentes, as sociedades de advogados e de consultores (repudiados na oposição e requisitados no governo, um déjà vu), hoje pelo Estado, amanhã contra ele, hoje a assessorar na feitura duma lei, amanhã a litigar contra o legislador.
Last but not the least, ainda há a EDP (vá, uma empresa pública, mas do império do meio), que recebe mesmo quando não fornece energia, é 'compensada' pelos custos da energia eólica e  ainda contesta (com sucesso) os impostos a pagar ou a perda de rendas consideradas excessivas. Uma chinesice.
Já agora, usando a argumentação do governo para vender umas telas, 'não receber é o mesmo que pagar', também as SGPS receberam mais de 1000M€ de benefícios fiscais em 2012. Até se entende que o Estado procure seduzir ou manter grandes empresas por cá, mas a mais bafejada, a Jerónimo Martins, até já zarpara para o país das túlipas, qual holandês voador.*

Esses são os grandes ('andamos todos a proteger os grandes grupos, andam juntinho com o Estado', disse o liberal António Borges), mas não esqueçamos os outros, e são muitos: não só os que recebem directamente do Estado, como os reformados dos sectores público e privado (tendo alguns descontado poucos anos), os pequenos empresários cujo balancete depende da câmara municipal, as pessoas com filhos bolseiros ou os desempregados, o quadro da papeleira cuja maquinaria de ponta foi comparticipada, ou o agricultor que é ‘ajudado’ nas compras e ‘almofadado’ nas vendas, mas também os tais que recebem, não pagando - o taxista, o merceeiro e o canalizador que subfacturam, o operário cujo patrão deve à Segurança Social ou às Finanças (indirectamente, é uma questão de vasos comunicantes) ou o administrador, cujo mercedes teve direito a benefício fiscal, i.e., foi parcialmente pago pelo Estado.
Contas feitas, de uma forma ou de outra, quase toda a gente (incluindo obviamente os funcionários públicos, mas esses não têm a hipocrisia de vociferar) depende do Estado e, como se vê, 'privado' é um termo um tanto ou quanto desfocado.

* Dizem-me que esta é conversa de esquerda, como é o uso do termo ‘mamar’, que já se me escapou. Talvez. Talvez a crítica ao governo pareça panfletária e, numa altura de aperto, a atenção e intolerância o que chamaríamos resignadamente de ‘pecadilhos’ estejam em alta. Talvez o ciclone que aqui paira baralhe todas as posições ideológicas. Talvez já não peça políticos que pensem como eu, apenas alguém que cumpre o que promete e seja milimetricamente justo na partilha dos activos e dos passivos pelos accionistas, nós todos. Sem preferência por quem está na sua lista telefónica.

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