segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

FALÁCIAS E MENTIRAS SOBRE PENSÕES

Henricartoon * sapo.pt 10/01/2014

Escreveu Jean Cocteau: “Uma garrafa de vinho meio vazia está meio cheia. Mas uma meia mentira nunca será uma meia verdade”. Veio-me à memória esta frase a propósito das meias mentiras e falácias que o tema pensões alimenta. Eis (apenas) algumas:
1. “As pensões e salários pagos pelo Estado ultrapassam os 70% da despesa pública, logo é aí que se tem que cortar”. O número está, desde logo, errado: são 42,2% (OE 2014). Quanto às pensões, quem assim faz as contas esquece-se que ao seu valor bruto há que descontar a parte das contribuições que só existem por causa daquelas. Ou seja, em vez de quase 24.000 M€ de pensões pagas (CGA + SS) há que abater a parte que financia a sua componente contributiva (cerca de 2/3 da TSU). Assim sendo, o valor que sobra representa 8,1% da despesa das Administrações Públicas.

2. Ou seja, nada de diferente do que o Estado faz quando transforma as SCUT em auto-estradas com portagens, ao deduzi-las ao seu custo futuro. Como à despesa bruta das universidades se devem deduzir as propinas. E tantos outros casos…

3. Curiosamente ninguém fala do que aconteceu antes: quando entravam mais contribuições do que se pagava em pensões. Aí o Estado não se queixava de aproveitar fundos para cobrir outros défices.

4. Outra falácia: “o sistema público de pensões é insustentável”. Verdade seja dita que esse risco é cada vez mais consequência do efeito duplo do desemprego (menos pagadores/mais recebedores) e - muito menos do que se pensa - da demografia, em parte já compensada pelo aumento gradual da idade de reforma (f. de sustentabilidade). Mas porque é que tantos “sábios de ouvido” falam da insustentabilidade das pensões públicas e nada dizem sobre a insustentabilidade da saúde ou da educação também pelas mesmas razões económicas e demográficas? Ou das rodovias? Ou do sistema de justiça? Ou das Forças Armadas? Etc. Será que só para as pensões o pagador dos défices tem que ser o seu pseudo “causador”, quase numa generalização do princípio do poluidor/pagador?

5. “A CES não é um imposto”, dizem. Então façam o favor de explicar o que é? Basta de logro intelectual. E de “inovações” pelas quais a CES (imagine-se!) é considerada em contabilidade nacional como “dedução a prestações sociais” (p. 38 da Síntese de Execução Orçamental de Novembro, DGO).

6. “95% dos pensionistas da SS escapam à CES”, diz-se com cândido rubor social. Nem se dá conta que é pela pior razão, ou seja por 90% das pensões estarem abaixo dos 500 €. Seria, como num país de 50% de pobres, dizer que muita gente é poupada aos impostos. Os pobres agradecem tal desvelo.

7. A CES, além de um imposto duplo sobre o rendimento, trata de igual modo pensões contributivas e pensões-bónus sem base de descontos, não diferencia careiras longas e nem sequer distingue idades (diminuindo o agravamento para os mais velhos) como até o fazia a convergência (chumbada) das pensões da CGA.

8. “As pensões podem ser cortadas”, sentenciam os mais afoitos. Então o crédito dos detentores da dívida pública é intocável e os créditos dos reformados podem ser sujeitos a todas as arbitrariedades?

9. “Os pensionistas têm tido menos cortes do que os outros”. Além da CES, ter-se-ão esquecido do seu (maior) aumento do IRS por fortíssima redução da dedução específica?

10. Caminhamos a passos largos para a versão refundida e dissimulada do famigerado aumento de 7% na TSU por troca com a descida da TSU das empresas. Do lado dos custos já está praticamente esgotado o mesmo efeito por via laboral e pensional, do lado dos proveitos o IRC foi já um passo significativo.

11. Com os dados com que o Governo informou o país sobre a “calibrada” CES, as contas são simples de fazer. O buraco era de 388 M€. Descontado o montante previsto para a ADSE, ficam por compensar 228 M€ através da CES. Considerando um valor médio de pensão dos novos atingidos (1175€ brutos), chegamos a um valor de 63 M€ tendo em conta o número – 140.000 pessoas - que o Governo indicou (parece-me inflacionado…). Mesmo juntando mais alguns milhões de receitas por via do agravamento dos escalões para as pensões mais elevadas, dificilmente se ultrapassam os 80 M€. Faltam 148 M, quase 0,1% do PIB (dos 0,25% que o Governo entendeu não renegociar com a troika, lembram-se?). Milagre? “Descalibração”? Só para troika ver?

12. A apelidada “TSU dos pensionistas” prevista na carta que o PM enviou a Barroso, Draghi e Lagarde em 3/5/13 e que tinha o nome de “contribuição de sustentabilidade do sistema de pensões” valia 436 M€. Ora a CES terá rendido no ano que acabou cerca de 530 M€. Se acrescentarmos o que ora foi anunciado, chegaremos, em 2014, a mais de 600 M€ de CES. Afinal não nos estamos a aproximar da “TSU dos pensionistas”, mas a … afastarmo-nos. Já vai em mais 40%!

13. A ideologia punitiva sobre os mais velhos prossegue entre um muro de indiferença, um biombo de manipulação, uma ausência de reflexão colectiva e uma tecnocracia gélida. Neste momento, comparo o fácies da ministra das Finanças a anunciar estes agravamentos e as lágrimas incontidas da ministra dos Assuntos Sociais do Governo Monti em Itália quando se viu forçada a anunciar cortes sociais. A política, mesmo que dolorosa, também precisa de ter uma perspectiva afectiva para os atingidos. Já agora onde pára o ministro das pensões?

P.S. Uma nota de ironia simbólica (admito que demagógica): no Governo há “assessores de aviário”, jovens promissores de 20 e poucos anos a vencer 3.000€ mensais. Expliquem-nos a razão por que um pensionista paga CES e IRS e estes jovens só pagam IRS! Ética social da austeridade?


António Bagão Félix, Economista, ex-ministro das Finanças * Público 13/01/2014

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