domingo, 5 de janeiro de 2014

CROMOS


A esplanada estava quase vazia (a suspensão da chuva fora tão clemente quanto inesperada), apenas eu e, duas mesas adiante, 3 homens - um deles, com um bigode mal semeado, a disfarçar a tenra idade, e 2 mais velhos, que se revelaram tão síncronos como as pernas dum CR7 sonâmbulo.
- Então, o natal foi bom?, perguntaram ao mais novo.
- Foi na Lixa, com a família toda. O meu tio Mário ensinou-me mais um ditado, daqueles que só ele conhece, 'Dos outros, diz bem ou nada'.
- Ora aí está um provérbio que ninguém consegue cumprir, retorquiu um dos outros. Algum tempo nesta empresa e vais ver que, numa equipa tão grande, inevitavelmente quase toda a gente tem algo a apontar a quase toda a gente, mesmo que no geral as pessoas sejam catitas. E então, começou a contar pelos dedos:
- Além do engraxador e o informador...
- Ele quer dizer delator, meteu uma bucha o outro, pelos visto não tão aborto com o seu ipad.
- ... que não contam, são espécimes à parte, há o que chega atrasado e o que tem pressa para zarpar, o desleixado e o stressado, o desconfiado controlador, o que se julga mais sério que os outros...
- Mas haverá alguém que não se julgue sério?
- ... o picuinhas e o porreiro (o que nem sempre é bem uma qualidade, depende da função), o simpático-pouco-profissional e o seu negativo, o que se faz de coitadinho. Mais, hum..., o nómada que trota dum lado para o outro sem fazer nada, ou o sedentário que magnetiza em cadeiras e deixa a labuta para os outros...
- Em zoologia, a borboleta e ostra.
- ... o que 'delega' só até à parte da assinatura, o moralista com cúpula vítrea, o desbocadamente sarcástico, com uma subtileza de paquiderme, ou o outro com a avareza intelectual do conselheiro Gama Torres.
- Cá faltava um bocadito de erudição, não baralhes o rapaz. É uma pessoa que guarda as suas sábias opiniões, porque as não tem. 
- Depois há os que acumulam, ou que têm facetas tão exacerbadas que mais parecem personagens de ficção ou caricaturas do Bordalo - uns cromos.
Enquanto os ouvia, iam-me passando caras conhecidas pela cabeça, tão estereotipado era o catálogo.
O mais engraçado é que ninguém se enxerga (incluindo este que te fala), às vezes são os atrasados crónicos os mais atentos à pontualidade alheia. Bem, falta-me alguém no retrato de família?, perguntou o predicante.
- Tu.
- Bem, nas costas dos outros, vês as tuas, e com ce'teza também falam de mim, que estou longe do nirvana... Na melhor das hipóteses, eu e aqui o Zé somos umas velhas carcaças insurrectas e maledicentes, assim como o Statler e o Waldorf dos marretas...
- Fala por ti.
- ... ahã. As outras hipóteses, prefiro não saber, por razões de sanidade mental. Este é um dos casos em que a ignorância é antidepressiva.
- Imagina, uma terapia de grupo com pentotal sódico... seria o armagedão.
Eu (vai-se a ver, também um cromo), que de popular só tenho (tinha) o partido, acenei mentalmente: livra...

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