quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

POR CÁ TUDO NA MESMA



Meu estimado amigo Saraiva:
Espero que a presente o encontre de saúde. Cá conto que os ares de Lausana lhe tenham melhorado os achaques.
Desde a minha última missiva, pouco mudou neste bocado de terra esquecido pelas Luzes. Este povo continua cabisbaixo e ciclotímico (termo em voga nas magazines científicas), ora deleitando-se com o pouco pão e circo que lhe resta, ora chorando o seu fado.

Quanto ao governo da nação, é o costume.
O chefe do ministério segue de estória em estória, para gáudio do Bordallo: primeiro descobriu-se que afinal o título de barão era falso, depois foi a aprovação dum hipódromo em terrenos proibidos, agora não resiste em fechar os pasquins mais afoitos, porque diz que devemos viver uma “liberdade respeitosa”.
E substitui a ausência de rumo por banquetes, corta-fitas e daguerreótipos. Ah, também por cortinas de damasco e tapetes da arménia, como se o país não estivesse cada vez mais endividado, em milhares de contos de réis.
Enquanto isso, o outro partido do rotativismo anda em bolandas, ninguém se entende há anos.

Veja o amigo que agora o Banco de Inglaterra disse que Portugal está em “morte lenta” – esses narcísicos ilhéus estão entupidos em Porto ou obnubilados pelo rapé, não repararam, há anos que estamos num estado agónico: desde que o reino perdeu a mesada do Brazil, que Portugal gasta mais do que tem, ano sim, ano sim. E tirando o citrino período do Fontismo, não se viu o país melhorar.
O termo é que considero pitoresco, Morte Lenta é o nome com que o pessoal do grémio baptizou uma casa de pasto na Rua do Alecrim, onde tudo é afogado em azeite, as batatas, as costeletas, as alheiras de Mirandela, o próprio balcão e o cabelo do garçon galego. Um terror para o fígado, digo-lhe.

Enfim, um lodaçal.
O que vale é o sumo de Baco – o Colares do ano passado saiu primoroso –, as ceias depois do S. Carlos (o pão) e as idas ao Passeio Público, onde vai toda a Lisboa que tem algo a dizer – sobre filosofia, notícias da alcova, novidades da mecânica e o último grito em águas-de-colónia (o circo, pois então).
Bem, tenho que secar e lacrar esta mensagem, e ainda apanhar o americano em Santos, a tempo de fazê-la seguir no próximo Sud-expresso.
Não se esqueça de me trazer uma caixa de trufas, se parar em Paris. Das pequeninas, que os meus rendimentos são cada vez mais parcos. Quase Liliputianos.
Um grande abraço deste seu criado, Adolpho Costa
P.s.: Os meus mais respeitosos cumprimentos à pia Senhora sua mãezinha.


Av. 24 de Julho e Ribeira das Naus, 1873
Marquês de Pombal, 1930

3 comentários:

  1. Que delícia! Muito bom, da primeira à última letra. Muito a propósito com o centenário da Républica. As fotos são fabulosas, a do Marquês é impressionante. A primeira é muito boa, não só como documento mas também artísticamente.

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  2. Devo dizer que chamamos mesmo morte lenta a um restaurante perto do trabalho, pelos motivos expostos.
    Quanto ao resto, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência...:)

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  3. Depois de O Último dos Moicanos e de O Último Samurai, temos aqui o Adolpho Costa, o último cavalheiro.

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