sábado, 17 de maio de 2014

EICHMANN EM JERUSALÉM


'O problema, no caso de Eichmann, era que havia muitos como ele, e que estes muitos não eram perversos nem sádicos, pois eram, e ainda são, terrivelmente normais, assustadoramente normais. Do ponto de vista das nossas instituições e dos nossos valores morais, esta normalidade é muito mais aterradora do que todas as atrocidades juntas, pois ela implica (como foi dito inúmeras vezes em Nuremberga pelos réus e pelos seus advogados) que este novo tipo de criminoso, sendo, na realidade, um hostis humani generis, comete os seus crimes em circunstâncias tais que lhe tornam impossível saber ou sentir que está a agir erradamente.' A.H.
 


Eichmann em Jerusalém, sobre o nazi raptado em Buenos Aires e julgado em Israel por (entre 15 acusações) crimes contra a humanidade, é talvez o livro menos filosófico de Hannah Arendt, que insistiu que a obra era uma reportagem e não um ensaio de filosofia. 
O subtítulo do livro, A banalidade do mal, foi entendido por alguns como uma contradição face ao conceito do 'mal radical' (historicamente sem precedentes, em que as pessoas são supérfluas) crismado no seu livro anterior, As Origens do Totalitarismo. A própria Arendt admitiu que mudara de opinião e não falava mais de mal radical, preferindo outra abordagem (mais compreensiva?), o facto dos 'maus' serem pessoas que, noutras circunstâncias, seriam normais e até respeitáveis. De facto, Arendt tinha a 'consciência de que também nós [os judeus], em circunstâncias idênticas, poderíamos ter agido mal'.
Arendt formula A questão, 'quanto tempo é necessário para que uma pessoa normal vença a sua inata repugnância pelo crime' e avança com uma pista, um truque de Himmler: orientar os instintos piedosos não para os outros, mas para si próprio - em vez de dizer "Que coisas horríveis eu fiz aos outros!", os assassinos diriam simplesmente "Que coisas horríveis tive eu de presenciar no cumprimento do meu dever, quão pesada é a minha missão!".
E o povo, pá? Arendt avança com uma explicação pontuada de ironia: da mesma forma que, num país civilizado, existe a tentação para violar as leis, que vertem a consciência colectiva (como o não matarás), talvez a esmagadora maioria dos alemães se sentisse tentada a violar as leis, no caso as ordens do Führer (como o matarás), mas tinham aprendido a resistir à tentação.
A escritora traz à liça outra questão, a faculdade de julgar: numa espécie de looping moral, em que os crimes eram legais, toda a 'sociedade respeitável' havia sucumbido a Hitler e as máximas morais estavam embaciadas, exigia-se que as pessoas 'fossem capazes de distinguir o bem do mal, mesmo quando não tinham para os guiar, nada além da sua própria faculdade de ajuizar, e esse mesmo juízo se encontrava em total contradição com a opinião unânime de todos os que os rodeavam'. Às ovelhas tresmalhadas, Arendt chama 'os raros homens que foram suficientemente "arrogantes" para se fiarem apenas no seu julgamento pessoal'. 
 
Voltando a Eichmann, ele não era suficientemente arrogante para dizer não - admitiu no tribunal que poderia arranjar um pretexto para mudar de função, como outros fizeram, mas sempre achou que essa atitude seria 'inadmissível' e mesmo naquela altura não a considerava 'digna de admiração'... (uma hierarquia de valores bem baralhada, num regime em que "A minha Honra é a minha Lealdade", simbólico lema das S.S.). Mais disse que a desobediência declarada seria 'impossível' e 'impensável'.
Arendt não viu em Eichmann um homem intrinsecamente mau, nem o achava estúpido, mas um zeloso burocrata, uma pessoa pouco letrada, falha de reflexão ('pura e simplesmente nunca teve consciência do que estava a fazer', escreveu, com demasiada benevolência) e vítima da sua gabarolice. Na sua opinião, o Obersturmbannführer (tenente-coronel) era directamente apenas responsável pela logística da emigração e, depois, da deportação dos judeus para o seu 'destino final', tendo-lhe sido atribuídas em tribunal responsabilidades que não teve.
 
Arendt dedica parte do livro ao pecado original do rapto do réu noutro país, à justiça dos 'vencedores' e à legitimidade do tribunal israelita (fazendo eco dos defensores dum tribunal internacional), em particular quanto à legitimidade territorial. A verdade é que Eichmann nunca teria um julgamento justo no seu país de adopção, sempre generoso com os nazis, ou na compreensiva Alemanha (a título de exemplo, Emanuel Schafer, pela morte de 6280 mulheres e crianças sérvias, foi condenado a 6,5 anos de prisão - 9 horas por cada vítima gaseada em furgões).
Apesar disso, e das inúmeras críticas ao julgamento, Arendt concordou com a pena de morte, e propôs o seu veredicto: '(...) A política não é um infantário; em política, obediência e apoio são uma e a mesma coisa. E como o senhor apoiou e executou uma política que consistia em não partilhar a Terra com o povo judaico e os povos de várias outras nações - como se o senhor e os seus superiores tivessem o direito de decidir quem deve e quem não deve habitar a Terra - pensamos que ninguém, nenhum ser humano, pode querer partilhar a Terra consigo. É por esta razão, e só por esta razão, que o senhor deve ser enforcado.'
 
p.s.: Será o mal (no caso, o holocausto) a negação de Deus? Um tal de J. L. Mackie referido na introdução dos editores) foi peremptório, as preposições 'Deus é omnipotente', 'Deus é infinitamente bom' e 'o mal existe' são contraditórias e não podem coexistir as três. A única escapatória, o livre-arbítrio, não satisfaz: se o homem é livre para decidir, Deus criou algo que não pode controlar.

Auschwitz, de Mieczyslaw Stobierski
Deutsches Historisches Museum (Berlin)
 

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