terça-feira, 19 de março de 2013

FILHO DE PEIXE


'Insistes em
andar a direito,
mas a vida
é feita de curvas'
J. E.



Sobre o pai, escreveu Lobo Antunes que os mortos 'alteram-se conforme se altera a imagem que temos, desde a aparência ao temperamento, entendemo-los melhor, ficamos em paz com eles, sem ressentimentos nem zanga, criaturas ao mesmo tempo verdadeiras e mitificadas cuja lembrança adquire uma perspectiva doce, envolta numa espécie de halo de ternura, isto depois dos julgamentos terríveis da nossa parte, tanta amargura, tanta impiedade'.
Por isso, E. deixou os pensamentos sobre o pai marinarem durante meses, antes de se pronunciar.

Dizia o pai que o avô era um dândi (outro estrangeirismo obsoleto que usava, como gasoil e restaurant) e que a sua carteira parecia um fole, ora cheia, ora vazia. Procurou ser a sua antítese, acima de tudo era um provider.
Senhor do seu nariz, foi sempre respeitado, era o Sr. doutor (antes de toda a gente ser doutor) apelido apelido. E ficou ofendido quando no hospital lhe chamaram apenas sr. António.
Caso fosse escritor, E. diria que ele era sanguíneo. Colérico e teimoso (a expressão 'enxertado em corno de cabra' batia certo com o seu ruminante signo, para quem acredita nisso), para ele só havia duas maneiras de ver as coisas, a dele e a errada. Situação que os demais, com os anos, aprenderam a gerir com omissões ou a 'fazer sala'.
Mais era parco nos elogios e nos afectos: prova nº 1, nunca deu um beijo, estendia a bochecha. Dizem que era assim por formação, e porque rumou cedo a colégios longe do carinho doméstico. Ou porque se deixara encarcerar pela própria imagem e um simples afago já não era natural, ainda que lhe apetecesse - é, não amava abertamente, mas não havia dúvidas do seu amor e dum, aqui e ali, orgulho pelos filhos. O certo é que não criou cumplicidades com a prole.

O que pode uma pessoa deixar a um filho? O nome, uns 'tarecos', o ofício e o exemplo. E essa checklist, em maior ou menor grau, cumpriu.
Como um carimbo, passou a rigidez dos princípios (burilada no que chamou lirismo), a importância em honrar o nome e a assinatura, o pragmatismo, a noção de que as obrigações vêm antes dos direitos, a distracção (chamaram-lhe fiscal do ar, porque não reparava em ninguém na rua), a cara de poucos amigos, a crueza das suas opiniões, o não gastar o que não se tem, nem tudo o que se tem.

A penúltima conversa que E. e o pai tiveram, foi um conselho: não te lamentes, faz-te à vida. E não pregava como frei Tomás: teve vários empregos e várias vidas, em cada hemisfério, em cada uma das 3 mulheres. Poderia usar o termo 'solução de continuidade' (que encerra um paradoxo, as 2 palavras têm um sentido e juntas significam ferida, lato sensu), pois no seu caminho foi cheio de interrupções e fracturas, mas teve que resolvê-las e continuar - quaisquer que fossem as guinadas, seguir em frente, marchar, marchar.
Quando se viram pela última vez, ambos sabiam que provavelmente o era. E. esperou ouvir um derradeiro ensinamento do pai, um balancete, a última lição dessa cathedra vitae de 8 décadas. Nada disso, antes ouviu um recado prosaico e pragmático: vê se o dinheiro [que vos deixo] não se gasta numa penada. Conseguiu ser desconcertante como sempre e previsível como de costume.

Foi feliz? Mesmo que tenha feito o que achou ser seu dever e o que a redutora consciência lhe ditava, mais feliz deve ter sido o seu hedonista progenitor.

notas soltas
Tinha mau coração. E maus pulmões. E maus rins, para não falar em hiperplasias várias (foram tantas as ameaças da Ceifeira, que parecia viver de créditos). A anarquia orgânica começou no dia em que se reformou e se sentou num cadeirão de pele, durante os 10 anos seguintes - estou para aqui, dizia. Logo ele, que sempre mandou, deixou de controlar o próprio corpo, dia a dia mais agrilhoado a uma garrafa de O2, e acabou dependente dos outros para as necessidades mais elementares.
Ao esvaziar gavetas - sacos e sacos pretos com revistas, papeis, agendas e cartões de visita, para o papelão fagocitar -, E. descobriu que também as suas grávidas gavetas não vão interessar a mais ninguém. 

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