quarta-feira, 14 de novembro de 2012

OS POBREZINHOS

   
    "Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros. Na minha família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana, buscar com um sorriso agradecido a ração de roupa e comida.
    Os pobres, para além de serem obviamente pobres
    (de preferência descalços para poderem ser calçados pelos donos, de preferência rotos para poderem vestir camisas velhas que se salvavam desse modo de um destino natural de esfregões, de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina),
    deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos e sobretudo manterem-se orgulhosamente fiéis à tia a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder ofendido e soberbo a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria
    - Eu não sou o seu pobre eu sou o pobre da menina Teresinha.
    O plural de pobre não era pobres. O plural de pobre era esta gente. No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes e deslocavam-se piedosamente ao sítio em que os seus animais domésticos habitavam, isto é um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à estrada militar, a fim de distribuírem numa pompa de reis magos peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas alvoraçados e gratos e as minhas tias preveniam-me logo enxotando-os com as costas da mão
    - Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
    Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer moedas aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
    (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)
    de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha tia Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque quando ela lhe meteu dez tostões na palma, recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
    - Agora veja lá não gaste tudo em vinho
    o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo
    - Não minha senhora vou comprar um Alfa-Romeo
    Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
    - O que é que o menino quer esta gente é assim
    e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
    Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o Padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse
    - Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar
    e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
    Na minha ideia o padre Cruz e a Sãozinha eram casados tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado Almanaque da Sãozinha, se narravam,em comunhão de bens os milagres de ambos, que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos de incenso.
    Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar com afecto crescente uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis."
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas
 

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