terça-feira, 27 de março de 2012

AS FARPAS (I) - A NAÇÃO E O DEFICIT


Ramalho Ortigão n' As Farpas
Junho, 1882
A sociedade portuguesa neste derradeiro quarteirão do século pode em rigor definir-se do seguinte modo: – Ajuntamento fortuito de quatro milhões de egoísmos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em comum.
Chamar pátria à porção de território em que uma tal agregação se encontra seria abusar repreensivelmente do direito que cada um tem de ser metafórico. O espaço circunscrito pelo cordão aduaneiro, dentro do qual sujeitos acompanhados das suas chapeleiras e dos seus embrulhos ou tomaram já assento ou furam aos cotovelões uns pelo meio dos outros para arranjar lugar nas bancadas, pode chamar-se um ómnibus – e é exactamente o que é – mas não se pode chamar uma pátria. A pátria não é o sítio em que nos coloca o acaso do nascimento, à mão direita ou à mão esquerda de uma guarda da alfândega, mas sim o conjunto humano a que nos liga solidariamente a convicção de uma pensamento e de um destino comum.
...
Perdendo a pouco e pouco a consciência da sua tradição histórica, Portugal, politicamente, não tem hoje papel na civilização. Está desempregado. Figura no congresso das nações como um país sem modo de vida. Perante o progresso está sem profissão.
(…) Portugal descansa desde o século XVI sobre os monumentos imortais da sua passada energia, e acha-se no movimento moderno da raça latina como uma nacionalidade com licença ilimitada para tomar ares (…) há duzentos anos sentado ao sol numa ponta do mapa-múndi, a cabecear, a coçar os joelhos e a ouvir ranger o calabre à nora da coisa pública (...).

(…) os homens que há vinte anos se revezam no governo carecem das ideias gerais de que procede na ciência o ponto de vista governativo. As assembleias das duas Câmaras, revezando-se ora para a direita ora para a esquerda, dão ou retiram a maioria dos votos a cada um daqueles senhores, consagrando-se exclusivamente a defendê-los ou a impugná-los, sem portanto saírem nunca da órbita dos princípios que eles representam, princípios a que não correspondem sistemas diversos e que se distinguem apenas uns dos outros pelos sinais fisionómicos dos estadistas que os têm no ventre, podendo-se dividir assim: princípios governativos calvos, princípios governativos de olhos tortos e princípios governativos de cabelos tingidos.

(…) - a questão da fazenda.
Reunidas as Câmaras e aberto perante elas o orçamento do Estado, começa-se invariavelmente por constatar, num trémulo elegíaco de sinfonia fúnebre, que continua a existir o deficit. Cada um dos três governos, a quem a Coroa alternadamente adjudica a mamadeira do sistema, encarrega-se de explicar aos taquígrafos essa ocorrência – aliás desagradável, cumpre dizê-lo – mas que ele, Governo em exercício, não tem culpa. A responsabilidade cabe ao Governo transacto, bem conhecido pelos seus esbanjamentos e pela sua incúria.
Para cada um desses três governos sucessivamente encarregados de trazerem o deficit ao regaço da representação nacional, o Governo que imediatamente o precedeu nesse mesmo encargo é o último dos imbecis.

(…) A Coroa pela sua parte – e este é o mais augusto de todos os seus privilégios – é sucessivamente da opinião de todos os três ministérios; e depois de haver retirado, com sincero nojo, a sua confiança aos imbecis do grupo nº 1, nº 2 e nº 3, a Coroa torna a restituir a citada confiança, com uma efusão de júbilo tão sincero como o nojo anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas colocados cronologicamente em sentido inverso (…)

Trocadas as descomposturas preliminares sobre a questão da fazenda, decide-se que é indispensável, ainda mais uma vez, recorrer ao crédito, e faz-se um novo empréstimo. No ano seguinte averigua-se por cálculos cheios de engenho aritmético que para pagar os encargos do empréstimo anterior não há outro remédio senão recorrer ainda mais uma vez ao país, e cria-se um novo imposto.
Fazem-se empréstimos para suprir o imposto, criam-se impostos para pagar os juros dos empréstimos, tornam-se a fazer empréstimos para atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros, e neste interessante ciclo vicioso, mas ingénuo, o deficit – por uma estranha birra, admissível num ser teimoso, mas inexplicável num mero saldo negativo, em uma não-existência, – aumenta sempre através das contribuições intermitentes com que se destinam a extingui-lo já o empréstimo contraído, já o imposto cobrado. (…)

Pela parte que lhe respeita o país espera. O quê? O momento em que pela boa razão de não haver mais coisa que se colecte, porque está colectado tudo, deixe de haver quem empreste por não haver mais quem pague.
No entanto o problema de aumentar a riqueza – último meio de prover aos encargos – é considerado como absolutamente estranho à questão da fazenda. E todavia nem toda a gente ignora que a riqueza não aumente senão pelo desenvolvimento progressivo do trabalho e que este se acha ligado aos progressos da indústria.

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