terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

POSTAIS ANTIGOS (XXXIX) - CRENDICES

 
8-4-1919

Qu'eu saiba, as únicas pessoas que conheci nascidas no século XIX foram as irmãs Ana da Aleluia e Francisca dos Prazeres. Que me lembro da minha bisavó Ana?
Do seu cabelo branco preso com ganchos de tartaruga, dos olhos castanhos imensos (mas imensas eram as lentas), das orelhas gigantes - faziam-me espécie, não sabia que crescem com a idade. Dela atrás da camilha com a braseira eléctrica, ao lado dum paquidérmico telefone, na sala da televisão; dela na sala de jantar, a lanchar chá de limão e bolachas de água-e-sal, guardadas na lata com desenhos ingleses; dela no quarto a dar-me rebuçados peitoriais Santo Onofre, guardados naquelas mesinhas-de-cabeceira com porta para o penico de porcelana.
E dela na capela da casa, cheia de santinhos, sentada numa cadeira (que levantava o tampo e tinha uma tábua forrada a veludo, para ajoelhar) a ouvir a rádio renascença e a rezar o terço. Todos os dias.
Era muito beata, a avó Ana. Muito crente.
Vim a saber, crente em tudo.

Descobri uns postais dela para a irmã mais nova, que teve uma longa doença e morreu cedo. Num recomendava paciência com a albumina, o remédio. Noutro dizia "Minha querida irmãzinha: Já era muito tua amiga, mas desde que sêi que já foste minha filha, noutra incarnação, muito mais amiga sou, se é possível ser-se mais do que tenho sido. O Fragoso recomenda-te que continues fazendo preces como te ensinou, o que faz m.to bem e são d'um grande alcance, quando feitas com fé. Adeus. Uma beijoca da tua amiga e tua irmã Ana".
Quando contei a descoberta à minha mãe, ela contou-me que a avó também acreditava em fantasmas, mas recusava falar disso. Na sua casa de Beja, o cão passava o tempo a ladrar para uma porta à saloon, e uma vez a Ana ouviu o filho bebé a chorar: quando entrou no quarto, viu um vulto sobre o berço (um homem ruivo e com barba, como o falecido sogro)... e, até morrer, o meu tio-avô Armando teve uma marca de dentes na orelha.

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