sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

PASSEIOS DA ALMA


Nunca li um livro de António Lobo Antunes. Ainda não (mas hei-de fazê-lo!), porque tenho a ideia que os seus livros são densos e sombrios, há que estar para aí virado.
Ora, foram exactamente esses 2 termos os utilizados para o editor descrever a sua última obra, Comissão de Lágrimas.
Da mesma forma que não leio poesia, mas gosto de ouvi-la, nunca li o escritor d' Os Cus de Judas, Auto dos danados, Memória de elefante, A morte de Carlos Gardel, Cartas da guerra, O arquipélago da insónia, mas gosto de ouvir o 'homem com ar de enfado'.

Não existem entrevistas banais a Lobo Antunes, são descargas de sentimentos já ruminados, macerados, dissecados, catalogados e resolvidos - conversas densas (hélas!) em que o escritor-médico não tem pejo em falar de si próprio e deambular sobre o que mais tem de íntimo, de uma forma muito pictórica.
Aconteceu a 19/10/2011, na SIC notícias (ver), à fala com Mário Crespo, a propósito da Comissão de Lágrimas, sobre uma das suas vivências mais marcantes, a guerra colonial.
Lobo Antunes citou Tolstoi ('a maior tragédia é a tragédia da cama'), falou da morte do pai ('o pai é a barreira entre nós e a morte; quando ele se vai, sabemos que da próxima vez que a morte bater à porta, somos nós a abrir') e a sua forma de sofrer ('eu choro como as grutas, para dentro, abre-se uma fissura e cai uma lágrima').

Se Mário Crespo dá um registo 'cosy' às suas conversas, o mesmo não se espera de Fátima Campos Ferreira. Mesmo assim, na entrevista dada em sua casa, a 14.10.2011 (ver), Lobo Antunes desnuda-se, como um exibicionista que abre a gabardine e mostra as suas vergonhas.
Começou por mostrar a parede onde escreve as frases de que gosta (incluindo uma sua, da Memória de Elefante, 'O que faria eu se estivesse no meu lugar?') e uma mesa com fotografias, dizendo de chofre que as fotografias são cadáveres.

Fez várias citações ('olhai, olhai mas vede', começava o discurso de João das Regras na defesa do Mestre de Avis), falou do pai, das grandes amizades, que são 'instantâneas', e de quando lutava contra um cancro e estava 'grávido da morte' (como escreveu então no Arquipélago da Insónia).
Sempre, sempre a morte: 'nascemos sozinhos e morremos sozinhos, a morte é uma coisa muito individual, o nascimento também', ou 'a maçada da morte é que ficamos mortos durante muito tempo'. À pergunta como gostaria de ser lembrado, como que encolhendo os ombros, respondeu 'já não vou cá estar para ver'.
Falou ainda sobre Deus, como se chateou com Ele quando viu o sofrimento dos seus doentes - disse uma vez ao Frei Bento Domingues 'Estou furioso com Deus' e o outro ripostou 'Óptimo, ele aguenta bem com isso'.

O escritor que se considera melhor que o nobel Saramago, e que tem uma relação belicosa com Miguel Sousa Tavares (este afirmou qualquer coisa como Antunes ser o melhor escritor português que não vende), disse saber muito pouco sobre o que é escrever e explicou que por vezes os livros se levantam à volta duma palavra, como um que escreveu a partir da frase 'esta casa deve ser triste às 3 horas da tarde' - 'é como uma pessoa encontrar um botão na rua e fazer uma fato para o botão'.

A jornalista ainda o quis arrastar para a política, mas Lobo Antunes disse desconfiar dos políticos e 'das pessoas que gostam da Humanidade, mas não gostam dos homens, ou seja, que gostam de grandes substantivos abstractos', como a honra, a pátria ou a glória, e foi em nome deles que sofremos o que sofremos.
Sobre a cultura, disse que os governantes querem o povo sem cultura, por isso mais submisso, e lastimou que os grandes autores não estejam nas livrarias: 'Se fôr procurar Camões ou Fernão Lopes, eles não têm. Têm livros de auto-ajuda.'

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